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Parte I;
Parte IIO Vaticano II recordou em muitos documentos a necessidade de uma renovação litúrgica, que acolhesse as melhores aquisições do movimento litúrgico que souberam nas décadas precedentes investigar os tesouros históricos da Igreja para encontrar um modo de restituir a seu esplendor original formas rituais que o tempo havia coberto com um véu de poeira. Se depois, como observa o Papa no documento citado, as próprias pessoas de “conspícua formação litúrgica” decidiram não seguir as formas litúrgicas oriundas da desejada renovação litúrgica, é sinal de que alguma coisa não funcionou.
Ouçamos novamente o Papa na citada carta de acompanhamento ao Motu proprio: “Isto acontece, antes de mais nada, porque em muitos lugares não se celebrava de modo fiel às prescrições do novo missal, este inclusive era compreendido como uma autorização e até como uma obrigação à criatividade, a qual conduziu frequentemente a deformações da Liturgia no limite do suportável. Falo por experiência, porque também eu vivi aquele período com todas as suas expectativas e confusões. E vi o quão profundamente foram feridas, pelas deformações arbitrárias da Liturgia, pessoas que eram totalmente radicadas na fé da Igreja”.
O Papa Bento fala pois de “deformações arbitrárias”; trata-se, segundo esta análise, de aplicações erradas ocorridas mais tarde, e não do missal de Paulo VI em si. A respeito deste último, muitas repetidas vezes nos seus discursos, o Papa admoesta aqueles que o consideram uma deformação da tradição eclesial e expressão de uma teologia heterodoxa.
Não por acaso prefere não falar de dois ritos, mas de “duas formas de um mesmo rito”: forma extraordinária, o antigo missal; forma ordinária, o novo; e “não há qualquer contradição entre uma e outra edição do Missal Romano”.
A mesma coisa o então Cardeal Ratzinger havia declarado mais extensamente em um discurso de 24 de outubro de 1998: “Pode-se dizer isto: que frequentemente é ampliada a liberdade que o novo Ordo Missae deixa à criatividade, e que a diferença entre as liturgias que se celebram segundo os novos livros, como de fato são postas em prática e celebradas nos diversos lugares, é com frequência maior do que aquela que existe entre a antiga e a nova liturgia, quando uma e outra são celebradas em conformidade com as prescrições dos livros litúrgicos. O cristão médio, privado de uma cultura litúrgica especializada, tem dificuldade de distinguir entre uma Missa cantada em latim segundo o velho missal e uma cantada em latim segundo o novo. A diferença entre uma celebração litúrgica que se atém fielmente ao missal de Paulo VI e a realidade das celebrações em língua corrente, com todas as possíveis liberdades de participação e de criatividade, tal diferença sim é que pode ser enorme!”.
Esta afirmação, clara e reiterada, que a diferença entre o velho e o novo “Ordo Missae” não é substancial, e que se trata antes de duas formas do mesmo rito, pode agradar ou não – se trata, em todo caso, do parecer do Papa, expresso de modo bastante formal em atos de elevado valor magisterial. Prestemos, portanto, a tal parecer o religioso obséquio que ele requer, e passemos a examinar quais sejam as deformações “ao limite do suportável” de que se fala, alertados pelas mesmas palavras do Papa que “... resta ver até que ponto cada etapa da reforma litúrgica posterior ao Concílio tenha sido um verdadeiro melhoramento ou, ao invés, banalizações; até que ponto tenhamos sido pastoralmente sábios ou, ao contrário, néscios”. (J. Ratzinger, “Rapporto sulla fede”, pp. 123-124).
A liturgia não é produto humanoNa “mira” do Papa, seja antes ou depois de sua eleição, está em primeiro lugar o conceito de “criatividade litúrgica”: Parecia muito frequentemente, nestes últimos decênios, que cada comunidade, cada sacerdote, fossem chamados a “inventar” as formas do culto segundo a própria sensibilidade. Em uma entrevista de 5 de setembro de 2003, o então cardeal declara: “Em geral, considero que a reforma litúrgica não tenha sido bem aplicada, porque se tratava de uma ideia geral. Hoje a liturgia é uma coisa da comunidade. A comunidade representa a si mesma, e com a criatividade dos padres ou de outros grupos, são criadas as suas liturgias particulares. Trata-se mais da presença de suas experiências e ideias pessoais, que do encontro com a Presença do Senhor na Igreja;e com esta criatividade e esta auto-apresentação da comunidade está desaparecendo a essência da liturgia. Coma essência da liturgia nós podemos superar as nossas próprias experiências e receber aquilo que não deriva delas, mas que é um dom de Deus. Assim penso que devamos restaurar não tanto certas cerimônias, mas a ideia essencial da liturgia – compreender que na liturgia não representamos a nós mesmos, mas recebemos a graça da presença do Senhor na Igreja do céu e da terra. E me parece que a universalidade da liturgia seja essencial”.
As últimas linhas são fundamentais: no pensamento constante do Papa, a liturgia é dada do alto. E com certeza, este dom passa através de mediações humanas (aquilo que constitui a Igreja como comunidade profética), mas permanece sendo mais que um produto humano;e visto o seu caráter de culto público, é e deve ser universal.
No livro “Introduzione allo spirito della liturgia”, p. 17-18, achamos expresso de modo muito forte o mesmo conceito. Falando do nascimento do culto do povo de Deus no Sinai, mas pensando no hoje, o Cardeal Ratzinger escreve: “O homem não pode ‘fazer’ para si mesmo o próprio culto; ele captura apenas o vazio, se Deus não se mostra. Quando Moisés diz ao faraó – ‘nós não sabemos com que cisa servir ao Senhor’ (Ex 10,26) – nas suas palavras, emerge de fato um dos princípios basilares de todas as liturgias. [...] A verdadeira liturgia pressupõe que Deus responda e mostre como nós podemos adorá-lo. Isto implica alguma forma de instituição. Ela não pode se originar de nossa fantasia, de nossa criatividade, pois desta forma seria apenas um grito na escuridão ou uma simples autoconfirmação”.
Este caráter não arbitrário do culto emerge, por contraste, de modo dramático no episódio do bezerro de ouro. “Este culto, guiado pelo sumo sacerdote Aarão, não devia na realidade servir a um ídolo pagão. A apostasia é mais sutil. [...] Não consegue manter a fidelidade ao Deus invisível, distante e misterioso. Fá-lo descer ao seu próprio nível, reduzindo-o a categorias de visibilidade e compreensibilidade. De tal maneira o culto não é mais um subir para ele, mas um rebaixamento de deus a nossas dimensões. [...] O homem se serve de deus segundo a própria necessidade e assim se põe na realidade sobre ele. [...] Este culto torna-se assim uma festa que a comunidade se faz para si; celebrando-a, a comunidade nada faz senão confirmar-se a si mesma. Da adoração de deus se passa a um círculo que gira em torno de si mesmo. [...] A estória do bezerro de ouro é um aviso contra o culto realizado segundo a propria medida e à procura de si mesmo. [...] Mas no final resta apenas a frustração, o sentido de vazio. Não há mais aquela experiência de libertação que há ali onde acontece um verdadeiro encontro com o Deus vivente”.
A estas linhas impressionantes pode-se objetar (como de fato objetou-se de muitas partes): mas a compreensibilidade da liturgia não é um valor positivo? Se ela é “sinal”, o sinal não deve necessariamente ser decifrável pelo seu destinatário humano?
No livro “Il sale della terra”, p. 199, o Cardeal Ratzinger responde: “Na nossa reforma litúrgica há a tendência, a meu ver equivocada, a adaptar completamente a liturgia ao mundo moderno. Esta deveria, pois, tornar-se ainda mais breve e dela deveria ser afastado tudo aquilo que se considera incompreensível; e ainda ao final, ela deveria ser traduzida numa língua ainda mais simples, mais ‘plana’. Deste modo, porém, a essência da liturgia e a própria celebração litúrgica é completamente mal compreendida. Porque nela não se compreende apenas de modo racional, assim como se compreende uma conferência, mas sim de modo complexo, participando com todos os sentidos e deixando-se compenetrar por uma celebração que não é inventada por uma comissão de peritos, mas que nos chega da profundidade dos milênios e, em definitivo, da eternidade.
É a condenação do racionalismo teológico, no fundo a mesma que já no século XVI a Igreja havia feito a Lutero: Deus, razão absoluta, está acima de nossa razão limitada. E a liturgia, com os seus símbolos sutis, é exatamente uma das modalidades suprarracionais com que Deus se comunica ao homem.
Em seguida ao abuso da “criatividade”, “perdeu-se o ‘proprium’ litúrgico que não deriva daquilo que nós fazemos, mas do fato de que aqui acontece Algo que todos nós juntos não podemos fazer. Na liturgia opera uma força, um poder que nem mesmo a Igreja toda inteira pode se conferir: aquilo que ali se manifesta é o absolutamente Outro que, através da comunidade (que não é, pois, patroa mas serva, mero instrumento) chega até nós” (do livro-entrevista “Rapporto sulla fede”).