quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Papa Bento XVI e a liturgia - Parte II


O valor do missal antigo e o

Motu Proprio “Summorum Pontificum”

Prof. Davide Ventura

in Papa Bento XVI e a Liturgia



Leia antes: Parte I

Pagamos de imediato o necessário tributo à atualidade, e entre as muitas questões abertas ligadas à liturgia detemo-nos sobre aquela que o magistério do Papa confrontou mais recentemente – e que suscitou as maiores reações também na opinião “laica”. É conhecido por muitos que em 1970 o Papa Paulo VI promulgou o novo missal elaborado nos anos precedentes pela comissão encarregada da realização da reforma litúrgica iniciada por impulso do Concílio Vaticano II. Tal missal continha, com efeito, substancias mudanças em relação àquele que até então estava em vigor, editado por João XXIII em 1962.

Este último não era senão a última revisão menor de um tipo litúrgico que remontava em continuidade à reforma efetuada pelo Concílio de Trento (o assim chamado Missal de Pio V). Por sua vez, Pio V havia no século XVI simplesmente revisto e reproposto um repertório de textos litúrgicos que se transmitira com mínimas mudanças durante toda Idade Média, remontava na sua substância a Gregório Magno (século VI), e continha partes que remontavam à mais remota antiguidade cristã.

E aqui se dá o problema: enquanto, como se viu, o missal romano conheceu até 1962 – ao longo de dezessete séculos de história – somente modificações graduais e não particularmente substanciais, bruscamente em 1970, foi introduzida uma forma litúrgica que se distanciava de modo significativo desta imemorável tradição.

Contextualmente à introdução do novo se teve na prática a proibição do uso do missal tradicional, coisa que provocou vivas reações em muitos ambientes, ao ponto de se tornar uma das maiores motivações por detrás do cisma promovido por Mons. Lefebvre.

O documento publicado por Bento XVI em 7 de julho passado, com o título “Summorum Pontificum”, põe finalmente em ordem, definindo a situação jurídica, que se tornara ao menos ambígua, da liturgia tradicional em relação à reformada. Vale a pena, vista a histórica importância do documento, percorrer os seus conteúdos fundamentais. Em primeiro lugar o Papa declara que o precedente missal jamais fora ab-rogado. Não se trata por isto de uma “reintrodução”, mas sim do reconhecimento de uma perene validade que a introdução do novo missal de 1970 não diminuiu de fato. Ao contrário, depois de algumas observações históricas que louvam a antiguidade e a continuidade de uso durante toda a história da Igreja latina, o Papa define a relação entre os dois Missais com as seguintes palavras: “O Missal Romano promulgado por Paulo VI é a expressão ordinária da ‘lex orandi’ da Igreja Católica de rito latino. Todavia o Missal Romano promulgado por São Pio V e novamente editado pelo B. João XXIII deve ser considerado como expressão extraordinária da mesma ‘lex orandi’ e deve ser tido com a devida honra pelo seu uso venerável e antigo. Estas duas expressões da ‘lex orandi’ da Igreja não conduzirão de modo algum a uma divisão na ‘lex credendi’ da Igreja; são de fato dois usos do único rito romano. Por isto é lícito celebrar o Sacrifício da Missa segundo a edição típica do Missal Romano promulgado pelo B. João XXIII em 1962 e jamais ab-rogado, como forma extraordinária da Liturgia da Igreja”.

Depois desta afirmação capital, o Papa prossegue definindo que todo sacerdote possa usar o Missal tradicional nas suas Missas privadas, às quais podem associar-se de própria vontade também outros fiéis. Os institutos de vida consagrada são livres para celebrar, eventual ou mesmo habitualmente, com o velho missal. Grupos estáveis de fiéis no interior das paróquias podem, por sua vez, pedir ao pároco que celebre para eles com o missal de 1962. O pároco é convidado a “acolher com generosidade” a tais pedidos; uma vez que esteja pessoalmente impossibilitado (e – se supõe – que por motivos válidos e não pretextos), o pedido deve passar ao Bispo Diocesano.

“Ao Bispo solicita-se vivamente ouvir o desejo deles. Se ele não pode providenciar tal celebração, a coisa seja referida à Pontifícia Comissão ‘Ecclesia Dei’. O bispo que deseja satisfazer a tais pedidos dos fiéis leigos, mas por várias causas está impedido, pode confiar a questão à Pontifícia Comissão ‘Ecclesia Dei’, que lhe dará conselho e ajuda”. Se a situação o aconselha, o Bispo pode reagrupar os pedidos com a constituição de uma “paróquia pessoal”.

Compreende-se claramente a intenção do Papa: a Missa tradicional, estando ainda em vigor, constitui um direito dos fiéis; os seus pedidos (desde que não feitos para disseminar discórdia...) de aceder a esta forma litúrgica sejam ouvidos: a nível paroquial, onde possível, ou mesmo diocesano. De modo algum tal pedido pode ser simplesmente ignorado – a própria autoridade da Santa Sé, por meio da Pontifícia Comissão ‘Ecclesia Dei’, torna-se fiadora dele.

Depois se reconhece aos membros do clero, obrigados à recitação cotidiana do breviário, possam cumprir esta obrigação mediante o breviário publicado por João XXIII.

Extremamente rica de conteúdo é também a carta enviada pelo Papa a todos os bispos em concomitância com a publicação do Motu proprio. Nela diz-se que, no ato de publicação do novo missal de Paulo VI, havia quem pensasse que o uso da forma mais antiga desapareceria por si mesma. Isto porém não aconteceu, e a adesão ao uso antigo permaneceu exatamente “nos países em que o movimento litúrgico havia dado a muitas pessoas uma conspícua formação litúrgica e uma profunda, íntima, familiaridade com a forma anterior da Celebração litúrgica”. Não se trata por isto necessariamente, segundo o Papa, de uma forma de rebelião contra a autoridade da Igreja, mas que “... muitas pessoas, que aceitavam claramente o caráter vinculante do Concílio Vaticano II e que eram fiéis ao Papa e aos Bispos, também desejavam todavia re-encontrar a forma, que lhes é cara, da sagrada Liturgia”.

E não se trata somente de anciãos: “Aparece claramente que também pessoas jovens descobrem esta forma litúrgica, sentem-se atraídas por ela e a consideram uma forma, particularmente apropriada para eles, de encontro com o Mistério da Santíssima Eucaristia”.

Se esta liturgia, tão antiga e venerável, jamais fora juridicamente ab-rogada, de onde nasce sua quase total desaparição, especialmente considerando que já o Papa João Paulo II havia publicado durante o seu pontificado atos que pediam aos bispos tomarem providências a fim de que os pedidos legítimos para celebrar segundo tal forma fossem mais largamente acolhidos?

Mais que de Roma, o problema surgiu entre os episcopados nacionais, “sobretudo porque frequentemente os Bispos, nestes casos, temiam que a autoridade do Concílio fosse posta em dúvida”.

Assim, enquanto os documentos de João Paulo II haviam deixado aos bispos uma larga margem aplicativa, Bento XVI conclui que “surgiu uma necessidade de um regulamento jurídico mais claro que, no tempo do Motu Proprio de 1988 não era previsível; estas Normas visam ainda a liberar os Bispos do dever de sempre de novo avaliar como fazer para responder às diversas situações”.

“Roma locuta, causa soluta” diziam os antigos: Roma falou, a causa está resolvida. Hoje, infelizmente, isto está longe de ser um fato previsível; mas que Roma tenha falado claramente, isto ninguém poderá por em dúvida.

Continua...

Fonte: Papa Ratzinger Blog
Tradução: OBLATVS