Escreve o Padre Tannoia, o primeiro biógrafo e contemporâneo
de Santo Afonso: “O Cardeal Castelli, conhecedor do grande
crédito de que Afonso gozava junto a todos pelo espírito de Deus que o animava
e o peso que a sua autoridade tinha
junto aos Cardeais,– sendo iminente o tempo em que eles deviam encerrar-se no
Conclave – quis que ele, como se respondesse a uma pessoa zelosa e amiga que
lhe tivesse pedido, indicasse em uma carta os principais abusos que deviam ser
extirpados da Igreja e da hierarquia eclesiástica, e outras coisas que se
deviam levar em consideração na eleição do novo Papa. Assim pediu o Cardeal, querendo
fazer presente a carta no Conclave, para que se elegesse um papa adequado às
circunstâncias. Afonso, diante desta ordem, enrubeceu. Todavia,
tanto pelo zelo pela glória divina, como para obedecer a um eminentíssimo
cardeal que ele tanto estimava, recomendou-se antes a Deus, e assim lhe respondeu
no dia 23 de outubro de 1774” (Tannoia, Da vida e instituto do Ven. Servo de Deus Afonso
Maria de Ligório, Napoles 1798-1802, lib. III, cap. 55)
Carta 773. A Padre Traiano
Trabisonda
Viva Jesus, Maria e José!
Arienzo, 24 de outubro de 1774
Ilustríssimo Senhor meu
estimadíssimo,
Meu amigo e senhor, acerca do
sentimento que se me pede sobre os assuntos atuais da Igreja e a eleição do
Papa, que pensamento posso apresentar, eu um miserável ignorante e de tão pouco
espírito, como sou?
Digo apenas que são necessárias
orações e grandes orações; já que, para levantar a Igreja do estado de
relaxamento e de confusão em que se encontram universalmente todos os níveis, nem
toda a ciência e prudência humana conseguem remediar, mas é preciso o braço
onipotente de Deus.
Entre os bispos, poucos são os
que têm verdadeiro zelo pelas almas.
As comunidades religiosas, quase
todas e mesmo sem o quase, estão relaxadas, porque nas congregações, na
presente confusão das coisas, falta a observância e a obediência se perdeu.
No clero secular as coisas estão
piores e, por isso, faz-se necessária aí uma reforma geral para todos os
eclesiásticos, de maneira a reparar a grande corrupção dos costumes, que existe
entre os seculares.
Por isso é preciso rezar a Jesus
Cristo que nos dê um Chefe da Igreja que, mais do que de doutrina e de
prudência humana, seja dotado de espírito e de zelo pela honra de Deus, e seja
totalmente alheio a qualquer partido e respeito humano, porque se, por nossa
desgraça, acontecesse um Papa que não tem apenas a glória de Deus diante dos
olhos, o Senhor pouco o assistirá e as coisas, como estão nas presentes
circunstâncias, irão de mal a pior.
Assim que as orações podem trazer
remédio a tanto mal, ao obter de Deus que ele mesmo ponha a sua mão e conserte.
Por isso, não somente impus a
todas as casas da minha mínima Congregação que rezem a Deus, com atenção maior
do que habitualmente, pela eleição deste novo Pontífice; mas na minha diocese
ordenei a todos os sacerdotes seculares e regulares que, na missa, recitem a
coleta pro electione pontificis; desejaria
que o Senhor inspirasse ao Sacro Colégio para escrever a todos os Núncios dos
reinos cristãos, para que ordenassem esta coleta, por parte do Sacro Colégio, a
todos os sacerdotes.
É este o sentimento que eu,
miserável, posso apresentar.
Para esta eleição do Papa, não
deixo de rezar mais vezes ao dia, mas o que podem minhas frias orações? Contudo,
confio nos méritos de Jesus Cristo e de Maria Santíssima, que antes que a morte
me atinja, que me está muito perto pela idade tão decadente e pela doença em
que me encontro, o Senhor possa consolar-me fazendo-me ver a Igreja
reconstituída.
Acrescento, amigo, que também eu
desejaria, como Vossa Senhoria ilustríssima, ver reformados tantos desarranjos
presentes; e saiba que, nesta matéria, giram-me pela mente mil pensamentos, que
gostaria de fazê-los presentes a todos. Mas, olhando para a minha mesquinhez,
não tenho ânimo de torna-los públicos, para não parecer que eu quero reformar o
mundo. Comunico-lhe, porém, em confiança e como um desabafo, estes meus
desejos.
Em primeiro lugar, gostaria que o
próximo Papa (já que faltam muitos Cardeais, que deverão ser nomeados)
escolhesse, entre aqueles que lhe serão propostos, os mais doutos e zelosos
pelo bem da Igreja e que intimasse preventivamente aos Príncipes, na primeira
carta em que lhes comunicará a sua eleição, que, quando pedirem o cardinalato
para algum favorito seu, não proponham senão pessoas de comprovada piedade e
doutas, porque, caso contrário, não poderá admiti-los em boa consciência.
Gostaria ainda que usasse toda a
sua força em negar mais benefícios àqueles que já estão de posse dos bens da
Igreja que lhes bastam para a sua manutenção, segundo o conveniente ao seu
estado. E nisso usasse toda a fortaleza contra os compromissos que poderão
aparecer.
Gostaria, além disso, que se
impedisse o luxo nos prelados e, por isso, se determinasse para todos (caso
contrário, a nada se porá remédio), se determinasse, digo, o numero dos
empregados, exatamente o que compete a cada categoria de prelados: tantos
camareiros e não mais; tantos servos e não mais; tantos cavalos e não mais;
para não dar mais o que falar aos hereges.
Mais ainda! Que se usasse
diligência ao escolher os bispos (dos quais, principalmente, depende o culto
divino e a salvação das almas), solicitando informações a mais pessoas sobre a
sua vida digna e doutrina necessária para governar as dioceses. E que, também
para aqueles que já estão em suas igrejas, se exigisse dos metropolitanos e de
outros, secretamente, a informação sobre aqueles bispos que pouco atendem o bem
de suas ovelhas.
Gostaria ainda que se fizesse
perceber, por toda a parte, que bispos descuidados e faltosos ou na residência
ou no luxo das pessoas que mantêm ao seu serviço, ou nas enormes despesas com
mobílias, banquetes e coisas semelhantes, serão punidos com a suspensão ou com
o envio de vigários apostólicos que consertem os seus defeitos, dando o
exemplo, de quando em vez, conforme a necessidade.
Todo exemplo desse tipo faria com
que estivessem mais atentos a se controlar os demais prelados descuidados.
Gostaria ainda que o futuro Papa
fosse muito reservado em conceder certas graças que prejudicam a boa disciplina,
como, por exemplo, permitir às monjas saírem da clausura por mera curiosidade
de ver as coisas do século, o conceder facilmente aos religiosos a licença de
se secularizar, pelos inconvenientes mis que daí decorrem.
Sobretudo, desejaria que o Papa
reconduzisse universalmente todos os religiosos à observância do seu primeiro
Instituto, pelo menos nas coisas mais principais.
Basta, não desejo mais causar-lhe
tédio. Nada podemos fazer, a não ser rezar ao Senhor, que nos dê um Pastor
pleno do seu espírito, que saiba estabelecer estas coisas que acenei brevemente,
conforme for mais conveniente à glória de Jesus Cristo.
E com isso, apresento-lhe minha
humilíssima reverência, enquanto com todo o obséquio me confesso
De Vossa Senhoria Ilustríssima
obrigadíssimo servo verdadeiro
AFONSO MARIA, bispo de Santa
Águeda dos Godos
Tradução de Dom Fernando Guimarães, C. SS. R.
Tradução de Dom Fernando Guimarães, C. SS. R.