“Introdução ao Espírito da liturgia” - Conferência de Mons. Guido Marini, Mestre de celebrações litúrgicas pontifícias, sobre canto litúrgico.
O SILÊNCIO E O CANTO (I)
É urgente reafirmar o autêntico espírito da liturgia, tal como está presente na ininterrupta tradição da Igreja e testemunhado, em continuidade com o passado, no mais recente magistério: a partir do Concílio Vaticano II até Bento XVI.
Usei a palavra “continuidade”. É uma palavra muito cara ao atual Pontífice, que fez dela o critério autorizado para a única interpretação correta da vida da Igreja e, especialmente, dos documentos conciliares, como também das propostas de reforma de qualquer natureza neles contidas.
E como poderia ser diferente? Acaso se pode imaginar uma Igreja de antes e uma Igreja de depois, como se tivesse sido produzido uma cisão na história do corpo eclesial? Ou acaso se pode afirmar que a Esposa de Cristo viveu, no passado, em um tempo histórico no qual o Espírito não a tenha assistido, de modo que este tempo deva ser esquecido e cancelado?
Com efeito, às vezes, alguns dão a impressão de aderir àquilo que se pode correta e apropriadamente ser definido como uma verdadeira ideologia, ou seja, uma ideia pré-concebida aplicada à história da Igreja e que nada tem a ver com a fé autêntica.
Fruto desta enganosa ideologia é, por exemplo, a recorrente distinção entre Igreja pré-conciliar e Igreja pós-conciliar. Pode até ser legítima uma tal linguagem, mas com a condição de não significar duas Igrejas: uma – a pré-conciliar – que nada mais teria a dizer ou a dar porque estaria irremediavelmente superada; outra – a pós-conciliar – que seria uma realidade nova originada no concílio e num seu pretenso espírito, em ruptura com o seu passado.
O que foi afirmado até aqui a propósito da “continuidade” tem a ver com o tema que somos chamados a discutir? Com certeza. Porque não pode existir o autêntico espírito da liturgia se dela não nos aproximamos com ânimo sereno, sem polêmica acerca do passado, seja remoto ou próximo. A liturgia não pode e não deve ser terreno de colisão entre quem encontra o bem somente naquilo que é anterior a nós e quem, ao contrário, naquilo que é anterior encontra quase sempre o mal.
Somente a disposição para olhar o presente e o passado da liturgia da Igreja como um patrimônio único e em desenvolvimento homogêneo pode nos levar a alcançar com alegria e gosto espiritual o autêntico espírito da liturgia. Um espírito, portanto, que devemos receber da Igreja e que não é fruto de nossas invenções. Um espírito, acrescento, que nos leva ao essencial da liturgia, ou seja, à oração inspirada e guiada pelo Espírito Santo, na qual Cristo continua a se fazer contemporâneo a nós e a entrar na nossa vida. Na verdade o espírito da liturgia é a liturgia do Espírito.
Na medida em que assimilamos o autêntico espírito da liturgia, tornamo-nos capazes de compreender quando uma música ou canto podem pertencer ao patrimônio da música sacra ou litúrgica, e quando não podem. Capazes, em outras palavras, de reconhecer a única música que tem direito de cidadania no interior do rito litúrgico, porque coerente com seu espírito autêntico. Se falamos, no início deste curso, de espírito da liturgia, o fazemos porque somente a partir disto é possível identificar quais são a música e o canto litúrgicos.
Em relação ao tema proposto não pretendo ser exaustivo. Nem mesmo pretendo tratar todos os temas que seria útil enfrentar para se ter uma panorâmica abrangente da questão. Limito-me a considerar alguns aspectos da essência da liturgia, com referência específica à celebração eucarística, da forma como a Igreja no-los apresenta e da forma como pude aprofundar-me neles nestes dois anos de serviço próximo a Bento XVI: um verdadeiro mestre de espírito litúrgico, seja através de seu ensinamento, seja através do exemplo de seu modo de celebrar.
O SILÊNCIO E O CANTO (II)
A participação ativa
Os santos celebraram e viveram o ato litúrgico dele participando ativamente. A santidade, como resultado de suas vidas, é o testemunho mais belo de uma participação verdadeiramente viva na liturgia da Igreja. Com razão, pois, e também providencialmente, o Concílio Vaticano II insistiu tanto sobre a necessidade de favorecer uma autêntica participação dos fiéis na celebração dos santos mistérios, no momento em que recordou o chamado universal à santidade. Esta indicação autorizada encontrou confirmação pontual e foi reproposta em muitos documentos sucessivos do magistério até os nossos dias.
Todavia, nem sempre se deu uma compreensão correta da “participação ativa”, tal como a Igreja ensina e exorta a vivê-la. É certo que se participa ativamente também quando se realiza, no interior da celebração litúrgica, o serviço que é próprio de cada um; participa-se ativamente também quando se tem uma melhor compreensão da Palavra de Deus escutada e da oração recitada; participa-se ativamente também quando se une a própria voz às vozes dos outros no canto coral... Tudo isto, porém, não significaria participação verdadeiramente ativa se não conduzisse à adoração do mistério da salvação em Cristo Jesus morto e ressuscitado por nós: porque somente quem adora o mistério, acolhendo-o na própria vida, demonstra ter compreendido aquilo que se está celebrando e, portanto, ser verdadeiramente partícipe da graça do ato litúrgico.
A verdadeira ação que se realiza na liturgia é ação do próprio Deus, a sua obra salvífica em Cristo de que nos deu a participar. Esta é, entre outras, a verdadeira novidade da liturgia cristã em relação a todas as outras ações rituais. O próprio Deus age e realiza aquilo que é essencial, enquanto o homem é chamado a abrir-se à ação de Deus a fim de ser transformado. O ponto essencial da participação ativa, consequentemente, é que seja superada a diferença entre o agir de Deus e o nosso agir, que possamos nos tornar uma única coisa com Cristo. Eis porque não é possível participar sem adorar.
Escutemos novamente um trecho da Sacrosanctum concilium: “É por isso que a Igreja procura, solícita e cuidadosa, que os cristãos não entrem neste mistério de fé como estranhos ou espectadores mudos, mas participem na ação sagrada, consciente, ativa e piedosamente, por meio duma boa compreensão dos ritos e orações; sejam instruídos pela palavra de Deus; alimentem-se à mesa do Corpo do Senhor; dêem graças a Deus; aprendam a oferecer-se a si mesmos, ao oferecer juntamente com o sacerdote, que não só pelas mãos dele, a hóstia imaculada; que, dia após dia, por Cristo mediador, progridam na unidade com Deus e entre si, para que finalmente Deus seja tudo em todos.” (n. 48).
Em relação a isto, todo o resto é secundário. E me refiro, em particular, às ações exteriores, embora importantes e necessárias, previstas sobretudo durante a Liturgia da Palavra. Se me refiro a elas é porque se tornaram o essencial da liturgia e esta fica reduzida a um genérico agir, e então o espírito da liturgia é mal compreendido. Como consequência, a verdadeira educação litúrgica não pode consistir simplesmente no aprendizado e no exercício de atividades exteriores, mas na introdução à ação essencial, à obra de Deus, ao mistério pascal de Cristo pelo qual é preciso deixar-se alcançar, envolver e transformar. E não se confunda a realização de gestos externos com o correto envolvimento da corporeidade no ato litúrgico. Sem nada eliminar do significado e da importância do gesto externo que acompanha o ato interior, a Liturgia pede muito mais ao corpo humano. Pede, de fato, o seu total e renovado empenho na cotidianidade da vida. Aquilo que o Santo Padre Bento XVI chama “coerência eucarística”. É exatamente o exercício preciso e fiel de tal coerência a expressão mais autêntica da participação corpórea no ato litúrgico, na ação salvífica de Cristo.
E ainda acrescento. Estamos mesmo seguros de que a promoção da participação ativa consiste em tornar tudo mais possível e imediatamente compreensível? Será que o ingresso no mistério de Deus não pode também e, às vezes, ser mais bem acompanhado daquilo que toca às razões do coração? Não acontece, em alguns casos, de se dar um espaço desproporcional à palavra, monótona e banalizada, esquecendo que à liturgia pertencem palavra e silêncio, canto e música, imagens, símbolos e gestos? E acaso não pertencem a esta múltipla linguagem que introduz ao centro do mistério de Deus e, portanto, à verdadeira participação a língua latina, o canto gregoriano, a polifonia sacra?
O SILÊNCIO E O CANTO (III)
Qual é a música para a liturgia
A mim não me compete adentrar diretamente naquilo que diz respeito à música sacra ou litúrgica. Outros, com mais competência, tratarão o assunto no curso dos próximos encontros. Aquilo que, porém, me cabe sublinhar é que a questão da música litúrgica não pode ser considerada independente do autêntico espírito da liturgia e, portanto, da teologia litúrgica e da espiritualidade que a segue.
O que, então, foi afirmado – que a liturgia é um dom de Deus que nos orienta para Ele e que, mediante a adoração, nos permite sair de nós mesmos para nos unir a Ele e aos outros- não somente visa a nos fornecer alguns elementos úteis para a compreensão do espírito litúrgico, mas também elementos necessários ao reconhecimento daquilo que de fato pode dizer-se música e canto para a liturgia da Igreja.
Permito-me, a este respeito, somente uma breve reflexão orientadora. Poder-se-ia perguntar o motivo pelo qual a Igreja nos seus documentos, mais ou menos recentes, insiste em indicar um certo tipo de música e de canto como particularmente consoantes à celebração litúrgica. Já o Concílio de Trento havia interferido no conflito cultural então em ato, restabelecendo a norma pela qual na música a adesão à Palavra é prioritária, limitando o uso dos instrumentos e indicando uma clara diferença entre música profana e música sacra.
A música sacra, de fato, não pode jamais ser entendida como expressão de pura subjetividade. Ela está ancorada nos textos bíblicos ou da tradição, textos a serem celebrados na formas de canto. Mais recentemente, o Papa São Pio X fez uma intervenção análoga, visando a distinguir a música operística da litúrgica e indicando o canto gregoriano e a polifonia da época da renovação católica como critério da música litúrgica, que deve ser distinta da música religiosa em geral. O Concílio Vaticano II não fez senão confirmar as mesmas indicações, como também as mais recentes intervenções magisteriais.
Por que a insistência da Igreja ao apresentar as características típicas da música e do canto litúrgicos de tal forma que permaneçam distintos de qualquer outra forma musical? E por que o canto gregoriano e a polifonia sacra clássica vêm a ser as formas musicais exemplares, à luz das quais se pode continuar hoje a produzir música litúrgica, mesmo a popular?
A resposta a esta pergunta está exatamente no quanto havíamos procurado afirmar relativamente ao espírito da liturgia. São exatamente aquelas formas musicais – na sua santidade, bondade e universalidade – que traduzem em notas, em melodia e em canto o autêntico espírito da liturgia: endereçando à adoração do mistério celebrado, favorecendo uma participação integral e autêntica, ajudando a acolher o sagrado e, pois, o primado essencial do agir de Deus em Cristo, permitindo um desenvolvimento musical que não esteja desancorado da vida da Igreja e da contemplação do mistério.
Permitam-me uma última citação de Joseph Ratzinger: “Gandhi evidencia três espaços de vida do Cosmo e mostra como cada um destes três espaços vitais comunica também um modo próprio de ser. No mar vivem os peixes e silenciam. Os animais sobre a terra gritam, mas os pássaros, cujo espaço vital é o céu, cantam. Do mar é próprio o silenciar, da terra o gritar e do céu o cantar. O homem, porém, participa de todos os três: ele carrega em si a profundidade do mar, o peso da terra e a altura do céu; por isto são suas as três propriedades: o silenciar, o gritar e o cantar. Hoje (...) vemos que ao homem privado de transcendência permanece somente o gritar, porque deseja ser somente terra e procura transformar também o céu e a profundidade do mar em sua terra. A verdadeira liturgia, a liturgia da comunhão dos santos, lhe devolve sua totalidade. Ensina-lhe novamente o silenciar e o cantar, abrindo-lhe a profundidade do mar e ensinando-lhe a voar, o ser do anjo; elevando o seu coração, faz ressoar de novo nele aqule canto que se havia adormecido. Ou ainda, podemos dizer que a verdadeira liturgia se reconhece exatamente no fato de que esta nos liberta do agir comum e nos restitui a profundidade e a altura, o silêncio e o canto. A verdadeira liturgia se reconhece no fato de ser cósmica, e não sob a medida de um grupo. Ela canta com os anjos. Ela silencia com a profundidade do universo à espera. E assim ela redime a terra”. (Cantate al Signore un canto nuovo, pp. 153-154).
Concluo. Já faz alguns anos que na Igreja, a muitas vozes, se fala da necessidade de uma nova renovação litúrgica. De um movimento, de alguma forma análogo ao que pôs as bases para a reforma promovida pelo Concílio Vaticano II, que seja capaz de operar uma reforma da reforma, ou ainda, um passo adiante na compreensão do autêntico espírito litúrgico e da sua celebração: conduzindo assim ao cumprimento aquela reforma providencial da liturgia que os padres conciliares haviam preconizado, mas que nem sempre, na atuação prática, encontrou realização exata e feliz.
(©L'Osservatore Romano - 18 de novembro de 2009)