O texto abaixo é um trecho do livro “Cavalo de Tróia na Cidade de Deus”, do
escritor católico alemão Dietrich von Hildebrand (1889-1977) acerca da função da
beleza no culto religioso.
“A beleza desempenha importante papel no culto religioso. O ato mesmo de
adoração à divindade encerra o desejo de envolver o culto com a beleza.
Estigmatizar a preocupação com o belo no culto religioso como “esteticismo” —
como fizeram recentemente, com crescente acrimônia, alguns católicos — é revelar
uma concepção deformada do culto religioso e da natureza do belo.
É o que se vê claramente quando se considera a natureza do “esteticismo”,
em vez de se usar o termo apenas com slogan destruidor.
O esteticismo é uma perversão na maneira de considerar a beleza. O esteta
saboreia coisas belas como quem saboreia vinho. Não as trata com o respeito e a
compreensão do valor intrínseco que requer uma resposta adequada, mas como
fontes de satisfação meramente subjetiva. Mesmo dotado de refinado bom gosto,
mesmo que seja um notável connaisseur, o tratamento do esteta não pode
fazer de maneira alguma justiça à natureza do belo. Acima de tudo, é indiferente
a todos os demais valores inerentes ao objeto. Qualquer que seja o tema de uma
situação, vê-o somente do seu ponto de vista da satisfação e do prazer estético.
Não consiste sua falha em superestimar o valor da beleza, mas em ignorar os
outros valores fundamentais, sobretudo os morais.
Tratar uma situação de um ponto de vista que não corresponde ao seu tema
objetivo é sempre uma grande perversão. Por exemplo, é perverso que um homem
trate de um drama humano que exige compaixão, simpatia e ajuda, como se fosse
mero objeto de estudo psicológico. Fazer da análise científica o único ponto de
vista em qualquer assunto é radicalmente antiobjetivo e até mesmo repulsivo; é
desrespeitar e anular o tema objetivo. Além de ignorar qualquer ponto de vista
que não seja o “estético” e qualquer outro tema que não seja o da beleza, o
esteta também deforma a natureza real da beleza em sua profundidade e grandeza.
Como já mostramos em outros livros, toda idolatria de um bem necessariamente
exclui a compreensão de seu verdadeiro valor. A maior e mais autêntica
apreciação de um bem somente é possível se o vemos em seu lugar objetivo na
hierarquia dos seres, disposta por Deus.
Se alguém se recusasse a ir à missa porque a igreja é feia e a música
medíocre, seria culpado de esteticismo, pois estaria substituindo o ponto de
vista estético ao ponto de vista religioso. Antítese do esteticismo é apreciar a
elevada função da beleza na religião, é compreender o legítimo papel que lhe
cabe desempenhar no culto e o desejo das pessoas religiosas em revestir de
grande beleza tudo o que se refere ao culto divino. Esta apreciação justa da
beleza é até um crescimento orgânico da reverência, do amor a Cristo, do ato
mesmo de adoração.
Infelizmente alguns católicos dizem, hoje, que o desejo de dotar de beleza
o culto se opõe à pobreza evangélica. É um erro grave e que parece
freqüentemente inspirado em sentimento de culpa por terem eles sido indiferentes
às injustiças sociais e negligenciado os legítimos reclamos da pobreza. É então
em nome da pobreza evangélica que nos dizem que as igrejas devem ser graves,
simples, despojadas de todos os adornos necessários.Os católicos que fazem essa
sugestão confundem a pobreza evangélica com o caráter prosaico e monótono do
mundo moderno. Deixaram de ver que a substituição da beleza pelo conforto, e do
luxo que muitas vezes o acompanha, é muito mais antitético à pobreza evangélica
do que a beleza — mesmo esta em sua forma mais exuberante. A noção funcionalista
do que é supérfluo é muito ambígua, simples seqüela do utilitarismo. Contradiz
as palavras do Senhor: Nem só de pão vive o homem. No livro Nova Torre de Babel,
procuramos mostrar que a cultura é um bem superabundante, algo que
necessariamente parece supérfluo à mentalidade utilitarista. Graças a Deus, esta
não foi a atitude da Igreja e dos fiéis através dos séculos. São Francisco, que
em sua própria vida praticou a pobreza evangélica ao extremo, jamais afirmou que
as igrejas devessem ser vazias, despojadas, sem beleza. Pelo contrário, igreja e
altar nunca seriam suficientemente belos para ele. Diga-se o mesmo de Cura
d’Ars, São João Batista Vianney.
Acontece um ridículo paradoxo quando, em nome da pobreza evangélica, são
demolidas e substituídas as igrejas mais preciosas artisticamente — e a que
custo! — por igrejas prosaicas e monótonas. Não é a beleza e o esplendor da
igreja, a casa de Deus, que são incompatíveis com o espírito de pobreza
evangélica e que escandalizam o pobre; são muito mais o luxo e o conforto
desnecessários, hoje tão em voga. Se o clero deseja retornar à pobreza
evangélica, deve reconhecer que em regiões como nos Estados Unidos e na Alemanha
o clero possui os carros mais elegantes, as melhores máquinas fotográficas, os
aparelhos mais modernos de TV. Beber e fumar muito é, certamente, oposto à
pobreza evangélica; mas não, decerto, a beleza e o esplendor das igrejas.
De um lado, afirmar-se que as igrejas deveriam ser despojadas, porém, ao
mesmo tempo, paróquias e campus de escolas católicas estão levantando feios
edifícios para assuntos sociais, dotados de todo tipo de luxo desnecessário.
Isto é feito em nome de problemas sociais e do espírito de comunidade. Até mesmo
nos conventos verifica-se desenvolvimento análogo. Essas novas estruturas não
são apenas opostas à pobreza evangélica; criam, também, uma atmosfera
tipicamente mundana. Cadeiras reclináveis e tapetes espessos com maciez não
muito saudável. Esses edifícios reúnem, artificialmente, três propriedades
negativas: dispendiosos (o que diretamente se opõe à pobreza evangélica), feios
e convidativos a concessões pessoais, típicas da degeneração que, hoje, ameaça
os homens.
Por vezes os argumentos iconoclastas tomam outra feição. Ouve-se,
ocasionalmente, algum vigário dizer que a missa é algo abstrato e que as
igrejas, especialmente o altar, deveriam ser despojados. Na verdade, a Santa
Missa é um mistério surpreendente e que transcende a toda compreensão pela só
razão, mas não é, absolutamente, abstrato.
Abstrato é algo especificamente
racional; opõe-se a real, concreto, individual. O mundo do sobrenatural, a
realidade revelada, transcende o mundo da razão, mas não implica nenhuma
oposição ao real e ao concreto. É, pelo contrário, realidade definitiva e
absoluta, se bem que invisível. A Missa é, assim, um epítome da realidade
concreta, do nunc (agora), pois o próprio Cristo se faz verdadeiramente
presente.
A força e o impacto existencial da Sagrada Liturgia têm suas raízes
exatamente no fato de não ser abstrato e dirigir-se não só à nossa inteligência
ou simplesmente à fé, mas, sobretudo, de falar, de inúmeras maneiras, à
totalidade da pessoa humana. Imerge o fiel na sagrada atmosfera do Cristo, pela
beleza e esplendor sagrado das igrejas, pelo colorido e beleza das vestimentas,
pelo estilo de linguagem e sublimidade musical do Cantochão.
Católicos progressistas dizem, às vezes, que aqueles que combatem a
iconoclastia, se ocupam do “inessencial”.
De fato, não é essencial que seja
bonita a igreja, onde se celebra a Santa Missa e distribui a Comunhão aos fiéis.
São essenciais apenas as palavras que perfazem a transubstanciação. Sendo este o
sentido da frase, nada objetaremos. Se o termo “inessencial” significar “sem
significação”, então se está querendo dizer que coisas como a beleza das
igrejas, a Liturgia e a música são “triviais” e a acusação é completamente
errada, porque existe uma relação profunda entre a essência de alguma coisa e
sua expressão adequada. A respeito da Santa Missa esta observação é
particularmente verdadeira.
O modo como é apresentado esse mistério, sua visível manifestação, desempenha
papel definido e não pode ser considerado sujeito a mudanças arbitrárias, apesar
de ser incomparavelmente mais importante aquilo que se expressa do que sua
expressão. Se bem que o tema efetivo da Missa seja tornar presente o mistério do
Sacrifício de Cristo na Cruz e o Mistério da Eucaristia, deve-se dar grande peso
à atmosfera sagrada criada pelas palavras, ações, acompanhamento musical e
igreja onde se celebra. nada disso pode ser considerado de interesse meramente
estético.
Contrapõe-se a todo esse menosprezo gnóstico do conteúdo e da forma
externa o princípio especificamente cristão de que as atitudes espirituais devem
encontrar também expressão adequada na conduta do corpo, nos seus movimentos e
no estilo de nossas palavras. A Liturgia inteira está penetrada desse
princípio.
Analogamente, o salão e o edifício onde se desenrolam cerimônias
sagradas devem irradiar uma atmosfera que lhe corresponda. É certo que a
realidade dos mistérios nada sofre se a sua expressão for inadequada. Há,
contudo, um valor específico em dar-lhe expressão adequada.
Como se erra, portanto, ao considerar a beleza das igrejas e da Liturgia como coisas que nos podem distrair e afastar do tema real dos mistérios litúrgicos para algo superficial! Quem diz que igreja não é museu e que o homem realmente piedoso é indiferente a essas coisas acidentais, apenas revela sua cegueira à magnífica função desempenhada pela expressão adequada (e bela). Em última análise, trata-se de uma cegueira à própria natureza humana. Mesmo que essas pessoas se proclamem “existencialistas”, continuam muito abstratas. Esquecem que a beleza autêntica encerra mensagem específica de Deus, que nos eleva as almas. Como dizia Platão: “À vista da beleza, crescem asas às nossas almas”. Mais ainda: da beleza sagrada relacionada à Liturgia nunca se afirma que seja temática, como nas obras de arte; pelo contrário, como expressão, têm a função de servir. Longe de obnubilar ou de se substituir ao tema religioso da Liturgia, ajuda a torná-lo fulgurante.
Valor não é sinônimo de “ser indispensável”. O princípio básico da
superabundância em toda a criação e em todas as culturas manifesta-se,
exatamente, nos valores não indispensáveis a certa finalidade ou tema. A beleza
da natureza não é indispensável à economia da natureza. Nem a beleza da
arquitetura é indispensável para nossas vidas. Mas, o valor da beleza, na
natureza e na arquitetura não é diminuído pelo fato de ser um dom, que de muito
transcende a mera utilidade. Desse modo, a beleza é importante não só quando é
ela mesma o tema (caso da obra de arte), mas também quando a serviço de outro
tema. Destacar que a Liturgia deve ser bela não é colorir religião com
tratamento estético. A aspiração pela beleza, na Liturgia, nasce do sentido do
valor específico que se apóia na adequação da expressão.
A beleza e a sagrada atmosfera da Liturgia são algo não só precioso e valioso
por si mesmo (na qualidade de expressões adequadas dos atos religiosos de
adoração), mas são, também, de grande importância para o desenvolvimento
espiritual das almas e dos fiéis. Repetimos: aqueles que, no movimento
litúrgico, têm insistido na afirmação de que orações e hinos cansativos
denominam o ethos religioso dos fiéis, apelando para o que no interior humano
está longe do que é religioso, lançam-no em uma atmosfera que obscurece e embaça
o semblante de Cristo. É de enorme importância a beleza sagrada para a formação
do verdadeiro ethos do fiel.
No livro Liturgia e Personalidade, falamos em
detalhe da função profunda da Liturgia em nossa santificação, sem sacrifício de
ser o culto de Deus seu tema central. Na Liturgia louvamos e agradecemos a Deus,
associamo-nos ao sacrifício e à prece do Cristo. Convidando-nos a orar a Deus
com o Cristo, a Liturgia exerce papel fundamental em nossa transformação em
Cristo. Esse papel não se restringe ao aspecto sobrenatural da Liturgia.
Integra, também, sua forma, a sagrada beleza que toma corpo nas palavras e na
música da Santa Missa ou do Ofício Divino. Desprezar esse fato é sinal de grande
primitivismo, mediocridade e falta de realismo.
Um dos maiores objetivos do movimento litúrgico tem sido o de substituir orações e hinos inadequados por textos sagrados das preces litúrgicas oficiais e pelo Canto Gregoriano. Assistimos, hoje, a uma deformação do movimento litúrgico quando muitos tentam substituir os sublimes textos latinos da Liturgia por traduções nativas, com gírias. Chegam mesmo a mudar, arbitrariamente, a Liturgia no intuito de “adaptá-la aos nossos tempos”. O Canto Gregoriano vai dando lugar, na melhor hipótese, à música medíocre, quando não ao jazz ou ao rock and roll. Essas grotescas substituições empanam o espírito de Cristo incomparavelmente mais do que o fizeram certos tipos antigos e sentimentais de devoção. Esses eram inadequados. Aqueles, além de inadequados, são antitéticos à sagrada atmosfera da Liturgia. É mais do que uma deformação; isso lança o homem em uma atmosfera tipicamente mundana. Apela no homem para algo que o torna surdo à mensagem de Cristo.
Mesmo quando se substitui a beleza sagrada, já não pela vulgaridade profana,
mas por abstração neutra, incorre-se em sérias conseqüências para as vidas dos
fiéis, pois, como indicamos, a Liturgia católica se dirige à personalidade total
do fiel. O fiel não é atraído ao mundo de Cristo apenas por sua crença ou por
símbolos estritos. São levados a um mundo mais alto pela beleza do altar, pelo
ritmo dos textos litúrgicos, pela sublimidade do Canto Gregoriano ou por músicas
verdadeiramente sacras, tais como a Missa de Mozart ou de Bach. Até mesmo o
perfume do incenso tem função significativa, nesse sentido. O emprego de todos
os canais capazes de introduzir-nos no Santuário é profundamente realista e
profundamente católico. É autenticamente existencial e realiza função notável em
ajudar-nos a elevar nossos corações.
Se é verdade que considerações de cunho pastoral poderão recomendar como
desejável o uso do vernáculo, o Latim da Missa — na missa silenciosa, dialogada
e, especialmente, cantada com o Gregoriano — jamais deveria ser abandonado. Não
se trata de guardar o latim de Missa por certo tempo até que os fiéis se
habituem à missa em vernáculo. Como a Constituição da Sagrada Liturgia
claramente determina, é permitido o uso do vernáculo, mas a Missa em Latim e o
Canto Gregoriano conservam toda sua importância. Foi essa a intenção do motu
proprio de São Pio X, que afirmou ser o Latim da missa, como o Canto Gregoriano,
responsável também pela formação da piedade dos fiéis, através da atmosfera
sagrada e única gerada por sua dicção. Assim, os anseios de muitos católicos e
do movimento Una Voce não se dirigem contra o uso do vernáculo, mas
contra a eliminação da Missa em Latim e do Canto Gregoriano. Eles apenas estão
pedindo que se cumpra, realmente, a Constituição da Sagrada Litugia.
Contudo, certos católicos de hoje manifestam o desejo de mudar a forma
exterior da Liturgia, adaptando-a ao estilo de vida de nossa época
dessacralizada. Esse desejo denota cegueira com relação à natureza da Liturgia,
bem como ausência de respeito reverencial e gratidão pelos dons sublimes de dois
mil anos de vida cristã. Acreditar que as formas tradicionais podem ceder o
lugar a algo melhor é dar provas de uma ridícula auto-suficiência. E esse
conceito é particularmente incongruente nos que acusam a Igreja de
“triunfalismo”. De um lado, eles consideram falta de humildade a Igreja
proclamar que Ela só é detentora da plena revelação divina (em vez de perceber
que essa proclamação se fundamenta da natureza da Igreja e decorre de sua missão
divina). De outro lado, demonstram ridículo orgulho quando simplesmente assumem
que nossa época moderna é superior às anteriores.
Podem-se ouvir, hoje, razões de protesto declarando, por exemplo, que o texto do Glória e de outras partes da Missa estão repleto de expressões cansativas de louvor e glorificação a Deus, quando deveriam fazer mais referências a nossas vidas. É um contra-senso que revela como tinha razão Lichtemberg ao dizer que, se fosse dado a um macaco ler as epístolas de São Paulo, ele veria sua própria imagem refletida nelas.
Admiram-se os nossos “teólogos” modernos não apresentarem, dentro em breve, uma nova versão do “Pai Nosso”, como o fez Hitler. O “Pai Nosso” claramente enfatiza o primado absoluto de Deus, tão distante da mentalidade típica moderna. Um único pedido diz respeito ao bem-estar terrestre: “o pão nosso de cada dia”… O restante diz respeito ao próprio Deus, a seu Reino, a nosso bem-estar eterno.”
Una Voce Brasil