Alguns meses atrás, apareceu em Espanha um livrinho intitulado “O Motu Proprio Summorum Pontificum: um problema ou uma riqueza?” cuja autoria é do superior da Fraternidade de Cristo Sacerdote e Santa Maria Rainha, o Padre Manuel Maria de Jesus. Não tardou muito e esta obra foi logo traduzida para português, o que é uma prova do interesse que a mesma suscita na Península Ibérica.
Porque a obra do Padre Manuel é digna de mérito, propomos que se deixem levar pelo fio condutor desta entrevista que acompanha, ela própria, o espírito que anima este sacerdote, profundamente preocupado como está em obedecer ao Santo Padre, e a transbordar de alegria e gratidão pelo facto de ter descoberto a liturgia tradicional.
Porque a obra do Padre Manuel é digna de mérito, propomos que se deixem levar pelo fio condutor desta entrevista que acompanha, ela própria, o espírito que anima este sacerdote, profundamente preocupado como está em obedecer ao Santo Padre, e a transbordar de alegria e gratidão pelo facto de ter descoberto a liturgia tradicional.
1.Sr. Padre Manuel, poderia apresentar-se aos nossos leitores?
O meu nome é Manuel Folgar Otero (Pe. Manuel Maria de Jesus). Fui ordenado sacerdote no ano de 1988 na diocese de Santiago de Compostela. Ali, enquanto sacerdote diocesano, exerci as funções de padre coadjutor na paróquia de São José, na cidade de Pontevedra (10 anos), capelão de hospitais (9 anos), director da cúria da Legião de Maria e director espiritual de uma secção da Adoração Nocturna Feminina. Durante doze anos, também desempenhei as funções de professor de religião e moral em escolas secundárias. E fui também administrador paroquial de várias paróquias rurais, às quais prestei a minha assistência pastoral ao longo dos últimos 15 anos. Depois, fundador da associação privada de fiéis Fraternidad de Cristo Sacerdote y Santa María Reina, e cofundador do instituto religioso em formação Misioneras de la Fraternidad de Cristo Sacerdote y Santa María Reina. Desde 2009, sou o superior da associação pública clerical- instituto religioso em formação Hermanos de la Fraternidad de Cristo Sacerdote y Santa María Reina, cuja comunidade se encontra estabelecida na cidade de Toledo (Espanha).
2. Qual é a sua experiência da forma extraordinária do rito romano e que lugar tem o Motu proprio Summorum Pontificum na sua vida de sacerdote?
Vista a minha idade, nasci em 1962, não tenho qualquer memória da Missa Tradicional nos anos da minha infância, e muito menos durante a minha juventude ou depois. A primeira vez que assisti à celebração da Santa Missa no que agora se chama o uso extraordinário foi já depois do ano 2000. Antes disso nunca tinha assistido, nem sequer em vídeo ou na televisão. Foi a partir do ano de 2004 ou 2005 que comecei a conhecer a Liturgia Tradicional, por ocasião das minhas visitas ao mosteiro francês do Barroux. Na raiz disso esteve também uma minha visita ao Seminário internacional do Instituto de Cristo Rei em Griciliano, que coincidiu com a visita do Cardeal Cañizares, nos inícios de Julho de 2007, que aí fora para ordenar novos sacerdotes. De facto, foi sobretudo a partir de 2007 que, com a publicação do Motu proprio, comecei a celebrar de modo assíduo segundo o uso extraordinário. Em Outubro desse mesmo ano, numa audiência inesquecível que nos foi concedida, o Cardeal Dário Castrillon deu-nos um grande ânimo, era então ele o Presidente da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei. Hoje em dia, o uso extraordinário é o uso próprio da nossa comunidade, tal como se encontra previsto nas nossas Constituições.
A minha experiência é muito positiva, e posso mesmo dizer que em certo sentido ela é apaixonante. O itinerário da descoberta deste tesouro maravilhoso que continuava escondido foi percorrido na companhia dos irmãos da minha comunidade, mas também na companhia dos meus próprios fiéis. Para os mais velhos, foi um redescobrir, para os mais jovens, uma novidade. Nas minhas paróquias, jamais encontrei a mais pequena aversão ou resistência relativamente à Missa Tradicional. Pode haver quem ache isso difícil de acreditar, mas foi mesmo assim. Os meus fiéis e eu, pudemos viver na própria carne aquela mesma experiência narrada pelo santo evangelho, quando o pai de família tira da arca de família coisas novas e antigas. Esse pai de família foi para nós Sua Santidade, o Papa Bento XVI, que nos mostrou e pôs à nossa disposição esse tesouro maravilhoso, ao mesmo tempo antigo e novo, que é a Liturgia bimilenar da Igreja, autêntico monumento de fé e de piedade.
Para a minha vida de sacerdote, isso veio significar um enriquecimento inacreditável em todos os sentidos: doutrinal, de vida de piedade, de identificação com Cristo Sacerdote e Vítima, etc. E em muitíssimos aspectos que não cabe agora aprofundar. E no entanto, creio ser oportuno desfazer um equívoco. Há quem reconheça que a Liturgia Tradicional pode enriquecer o sacerdote que a celebra, mas que seria prejudicial para os fiéis no sentido de que os viria empobrecer do ponto de vista espiritual, pois a sua participação e o seu grau de “compreensão” ficariam muito diminuídos, quando não completamente anulados. Humildemente, tenho de dizer que não é essa a minha experiência, antes pelo contrário. A celebração da Liturgia Tradicional obriga o sacerdote a um maior cuidado pastoral para com os fiéis, no sentido de uma maior dedicação à sua formação doutrinal e espiritual. Uma formação permanente dos fiéis, ensinando-lhes em que consiste a verdadeira actuosa participatio — disposição interior a unir-se a Cristo Vítima por meio do sacerdote que como ministro de Cristo e da Igreja renova e oferece o Santo Sacrifício — e tratando de a promover. Uma maior dedicação à sua formação litúrgica e mistagógica. Com que direito e com que base podemos nós subestimar a capacidade dos fiéis para participarem dignamente e com fruto na liturgia bimilenar da Igreja? Há fiéis com um nível cultural muito baixo e de ambientes muito simples que bem poderiam dar aulas a muitos que se têm por ilustrados. Fiéis que conhecem por dentro e por fora os conteúdos da fé e que vivem com uma profundidade assombrosa o mistério eucarístico em virtude da sua profunda união a Cristo Sacerdote, tirando da sua participação no Santo Sacrifício a força e a inspiração para de seguida, no correr das suas vidas, se oferecerem como hóstias vivas, santas e gratas a Deus. E nunca passaram pelos bancos da Faculdade de Teologia.
Hoje, graças a Deus, os fiéis sabem ler e podem acompanhar os textos da Santa Missa nos seus missais, para assim se associarem mais perfeitamente às orações da Sagrada Liturgia. Isto exige uma maior concentração e atenção do que a de quem se limita a ouvir.
Por trás de muitas objecções há mais ideologia do que fundadas razões.
3. Na introdução, o Sr. Padre oferece como motivação para o seu livro o desconhecimento por parte dos sacerdotes espanhóis, e mais ainda dos fiéis, do texto do MP. Então, não estará surpreendido com o resultado da sondagem realizada pela Ipsos a pedido da Paix Liturgique nas vésperas da JMJ, e que mostra que 6,5% dos fiéis praticantes espanhóis jamais tinham ouvido falar do MP.
Não estou surpreendido de todo. Mais ainda, a percentagem dada pela sondagem talvez até seja inferior à percentagem real. Estou convencido de que a imensa maioria dos fiéis nunca ouviram falar do Motu proprio. E vai no mesmo sentido o facto de que muitos dos fiéis e sacerdotes a quem o tema diz alguma coisa não conhecem o conteúdo do Motu proprio. Lê-se muito pouco. A ideia que predomina, e que é completamente deformada, é a de que o Papa autorizou a Missa em latim para os seguidores de Mons. Lefebvre. Não são poucos aqueles que tratam de difundir este equívoco com a finalidade de fazer calar os ensinamentos do Papa e de desvalorizar a transcendência do Motu proprio, que, diga-se de passagem, tem valor de lei para a Igreja universal, e por isso, vem promulgar verdadeiros direitos e deveres que têm de ser respeitados por todos.
Tristemente, não são poucos os que se ficam pelos títulos sensacionalistas — que muitas vezes distorcem a realidade e os verdadeiros conteúdos — apresentados por alguns meios de comunicação.
4. O seu livro, no conteúdo e na forma, aí está para confirmar isto mesmo: o seu principal objectivo é pois o de dar a conhecer melhor o MP e a vontade do Papa em matéria de liturgia. Como é que ele foi recebido em Espanha?
Fizemos o que pudemos. A recepção tem sido muito boa por parte daqueles a quem pudemos chegar e que, dadas as nossas possibilidades, não foram muitos. Fomos nós mesmos que o editámos e não temos tido outros meios de difusão para além de páginas da internet e dos nossos contactos pessoais.
Para um tema como este, não se pode contar com uma editorial católica. Não é coisa que lhes interesse, não é o género deles … Repare que até mesmo o livro de Mons. Schneider, Dominus est, que é extraordinário, e que, pelo que me dizem, muito agradou a Bento XVI, foi oferecido a várias editoriais de língua espanhola a um preço irrisório do ponto de vista dos direitos de autor e nessa altura ninguém o quis publicar; o que se passou entretanto, isso já não sei … E estamos a falar de editoras católicas, algumas das quais com fama de “conservadoras”. Uma vez mais, reina a ideologia. É como se a alguns conviesse que as pessoas não saibam muitas coisas, que as pessoas não pensem livremente, que todos se submetam aos ditames do "establishment" dominante. E é uma pena, mas infelizmente é isso que se passa. Bento XVI denunciou repetidamente a ditadura do relativismo. Pois também poderíamos falar, e não há dúvidas quanto a isso, da existência de uma ditadura do pensamento único que está presente e que é muito poderosa em alguns círculos.
Porque será que alguns mostram tanto medo de que as pessoas conheçam, experimentem e decidam? Não vão lá já tantos anos que se vem proclamando a “maioridade” dos leigos? Pois bem, deixe-se que eles decidam e não se tente pôr obstáculos às decisões do Santo Padre.
5. No capítulo 9, o Sr. Padre insiste na necessidade de unidade das igrejas locais com Roma. Até agora, só houve um prelado espanhol, Mons. Ureña Pastor, que celebrou a forma extraordinária na sua própria diocese. Será que podemos esperar que em breve o seu exemplo venha a ser seguido por muitos outros bispos?
Ao momento presente, parece que já houve outros bispos espanhóis que celebraram segundo o uso extraordinário por ocasião da Jornada Mundial da Juventude, onde, é certo, o uso extraordinário não foi mais do que um apêndice quase invisível. Não foi anunciado nem se lhe deu qualquer cobertura. A darem-se conta foram poucos mais além daqueles que já de antemão sabiam que iriam participar nessas celebrações porque faziam parte de grupos ligados ao uso extraordinário. Desconheço de quem seja a responsabilidade por isto e também não me arrogo o direito de pensar que tenha nisso havido má fé.
Não creio que tenhamos em breve bispos a celebrarem a Missa Tradicional nas suas dioceses, entre outras coisas porque não existe uma procura por parte de um número significativo de fiéis, religiosos ou sacerdotes. Há porém sacerdotes que não se atrevem nem a aprendê-la nem a celebrá-la, segundo eles mesmos dizem, por medo da incompreensão e das críticas … Em Espanha ainda estamos a viver na “etapa de Nicodemus”: aprender a celebrar sem ser visto e sem que se saiba…
Contra factos não há argumentos, e os factos dizem-nos que terão de ser os fiéis e os sacerdotes mais convictos e mais decididos a abrir uma brecha neste campo. Desconheço qual seja o pensamento do Santo Padre, mas precisamente com o Motu proprio parece ficar patente que o Papa considerou que este tema deixa de estar dependente da decisão arbitrária dos bispos a este propósito. Nos últimos anos, de Roma insiste-se permanentemente sobre os “direito dos fiéis” a participarem na Liturgia Tradicional e não sobre um direito dos bispos de a autorizarem ou de a desautorizarem. A mais alta autoridade em matéria de liturgia é o Papa e foi Bento XVI que promulgou o Motu proprio e que, de passagem, aproveitou para lembrar que a Missa Tradicional nunca esteve oficialmente proibida. Isto leva-nos a pensar que nos casos em que, de facto, se proibiu, proibiu-se contra o direito.
As igrejas locais estão chamadas a viver em comunhão afectiva e efectiva com a Igreja mãe de Roma. Esta comunhão expressa-se e manifesta-se de maneira excelente na prática litúrgica. Certamente que em cada diocese é o bispo o responsável máximo da Liturgia, função que terá de desempenhar em perfeita comunhão e sintonia com as disposições da Sé Apostólica. É por isso mesmo que o Motu proprio em nada diminui a autoridade dos bispos.
Outra monumental barbaridade consiste em afirmar que a coexistência de diversos usos litúrgicos põe em perigo a comunhão eclesial. Esta é uma argumentação que se desmonta rapidamente do ponto de vista histórico e no plano da realidade concreta. Veja-se a riqueza dos distintos ritos litúrgicos orientais e latinos. Será que se pode afirmar com seriedade que uma tal variedade põe em perigo a unidade da Igreja? A unidade da Igreja é atacada, isso sim, quando se negam as verdades da fé, quando se contesta o Magistério, quando se desobedece ao Vicário de Cristo ou quando alguém se vem apropriar da Liturgia como se fosse algo seu, “fabricando-a” à margem das leis da Igreja.
Por outro lado, há também bispos que argumentam dizendo que, na realidade, não há um número consistente de fiéis que lhes venham solicitar a celebração do uso extraordinário. É verdade. Mas também é verdade que não se pode solicitar o que se desconhece. Hoje há ainda muitas pessoas que desconhecem até mesmo a própria existência do uso extraordinário e portanto não podem nem opinar nem decidir livremente.
6. Voltando à sondagem Ipsos encomendada pela Paix Liturgique, o que é que lhe sugere o número de 50,4% dos praticantes que se declaram dispostos a assistir pelo menos uma vez por mês à forma extraordinária, caso a mesma seja celebrada nas suas paróquias sem que venha substituir a forma ordinária?
Não me surpreende em absoluto. Creio mesmo que a taxa de assistência seria ainda maior, pois tenho observado que nos lugares onde se celebra o uso extraordinário, 40 anos depois (!), os fiéis ficam maravilhados e têm mostrado o desejo de poder assistir mais vezes. Não compreendem porque é que um semelhante tesouro há-de estar escondido e fechado a sete chaves. E refiro-me a fiéis de todas as idades. Por exemplo, é muito curioso observar como o uso extraordinário encanta aos mais pequenos. A Missa Tradicional tem um atractivo muito especial para os acólitos. E também para os jovens, que têm uma especial sensibilidade e abertura para a beleza, o sentido do mistério, a adoração e o silêncio contemplativo.
Devo também dizer que se impõe a necessidade de uma formação prévia, uma verdadeira catequese litúrgica, para assim se redescobrir toda a riqueza simbólica, doutrinal e espiritual que o rito possui. Os fiéis ficam encantados.
7. Uma palavra para concluir?
Quero agradecer à Paix Liturgique por esta entrevista. Como o seu próprio nome indica, trata-se de alcançar a paz litúrgica e sobretudo a paz dos corações, fruto da justiça. E é de justiça respeitar os direitos dos fiéis, assim como o é outorgar à Liturgia Tradicional o lugar que lhe corresponde! Assim o diz o nosso amantíssimo Papa, Bento XVI, na Carta dirigida aos bispos que acompanha o Motu proprio Summorum Pontificum: «Aquilo que para as gerações anteriores era sagrado, permanece sagrado e grande também para nós, e não pode ser de improviso totalmente proibido ou mesmo prejudicial. Faz-nos bem a todos conservar as riquezas que foram crescendo na fé e na oração da Igreja, dando-lhes o justo lugar.»
SUMMORUM PONTIFICUM: UM PROBLEMA OU UMA RIQUEZA?
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