sábado, 12 de fevereiro de 2011

A Língua da Celebração Litúrgica



Uwe Michael Lang
Oficial da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos
Consultor do Ofício de Celebrações Litúrgicas do Sumo Pontífice


A língua não é apenas um instrumento que serve para comunicar fatos, e deve fazê-lo de modo mais simples e eficiente, mas é também o meio para exprimir a nossa mens de um modo que coenvolva toda a pessoa. Consequentemente, a língua é também o meio em que se exprimem os pensamentos e as experiências religiosas.

A língua usada no culto divino, ou melhor, a "língua sacra" não se precipita na glossolalia (cf. 1 Cor 14) ou no silêncio místico, excluindo completamente a comunicação humana, ou pelo menos tentando fazê-lo. Todavia, fica reduzido o elemento da compreensibilidade em favor de outros elementos, em particular o expressivo. Christine Mohrmann, a grande historiadora do latim dos cristãos, afirma que a língua sacra é um modo específico de "organizar" a experiência religiosa. De fato, Mohrmann sustenta que toda forma de crença na realidade sobrenatural, na existência de um ser transcendente, conduz necessariamente à adoção de uma forma de língua sacra no culto, enquanto um laicismo radical leva a descartar qualquer forma de uma tal língua. Neste sentido, o Cardeal Albert Malcolm Ranjith recordou numa entrevista: "O uso de uma língua sacra é tradição em todo o mundo. No Hinduísmo a língua da oração é o Sânscrito, que não está mais em uso. No Budismo se usa o Páli, língua que hoje somente os monges budistas estudam. No Islã se emprega o Árabe do Corão. O uso de uma língua sacra nos ajuda a viver a sensação do além" (La Repubblica, 31 de julho de 2008, p. 42).


O uso de uma língua sacra na celebração litúrgica faz parte daquilo que São Tomás de Aquino na Summa Theologiae chama solemnitas. O Doutor Angélico ensina: "Aquilo que se encontra nos sacramentos por instituição humana não é necessário para a validade do sacramento, mas confere uma certa solenidade, útil nos sacramentos para excitar a devoção e o respeito naqueles que os recebem" (Summa Theologiae III, 64, 2; cf. 83, 4).

A língua sacra, sendo o meio de expressão não somente dos indivíduos, mas de uma comunidade que segue as suas tradições, é conservadora: mantém as formas linguísticas arcaicas com tenacidade. Ademais, são introduzidos nela elementos externos, na medida em que associados a uma antiga tradição religiosa. Um caso paradigmático é o vocabulário bíblico hebraico no latim usado pelos cristãos (amém, aleluia, hosana, etc.), como já observara Santo Agostinho (cf. De doctrina christiana II, 34-35 [11,16]).

Ao longo da história, foi utilizada uma ampla variedade de línguas no culto cristão: o grego na tradição bizantina; as diversas línguas das tradições orientais, como o siríaco, o armeno, o georgiano, o copta e o etiópico; o peleoeslavo; o latim do rito romano e dos outros ritos ocidentais. Em todas estas línguas se encontram formas de estilo que as separam da língua "ordinária", ou melhor, populares. Frequentemente este afastamento é consequência dos desenvolvimentos linguísticos na linguagem comum, que depois não são adotados na língua litúrgica por causa do seu caráter sacro. Todavia, no caso do latim como língua da liturgia romana, um certo afastamento existiu desde o início: os romanos não falavam no estilo do Cânon ou das orações da Missa. Tão logo o grego foi substituído pelo latim na liturgia romana, foi criada como meio de culto uma linguagem fortemente estilizada, que um cristão mediano da Roma tardo antiga teria compreendido não sem dificuldade. Além do mais, o desenvolvimento da latinitas cristã pode ter tornado a liturgia mais acessível às pessoas de Roma ou Milão, mas não necessariamente àqueles cuja língua materna era o gótico, o celta, o ibérico ou o púnico. De qualquer modo, graças ao prestígio da Igreja de Roma e à força unificadora do papado, o latim torna-se a única língua litúrgica e, desse modo, um dos fundamentos da cultura no Ocidente.

A distância entre o latim litúrgico e a língua do povo torna-se maior com o desenvolvimento das culturas e das línguas nacionais na Europa, para não mencionar os territórios de missão. Esta situação não favorecia a participação dos fiéis na liturgia e, por isso, o Concílio Vaticano II quer estender o uso do vernáculo, já introduzido em uma certa medida nos decênios precedentes, na celebração dos sacramentos (Constituição sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, art. 36, n. 2). Ao mesmo tempo, o Concílio sublinhou que "o uso da língua latina [...] seja conservado nos ritos latinos" (ibid., art. 36, n. 1; cf. também art. 54). No entanto, os Padres Conciliares não imaginavam que a língua sacra da Igreja ocidental seria totalmente substituída pelo vernáculo. A fragmentação linguística do culto católico avançou tanto que muitos fiéis hoje dificilmente podem recitar juntos um Pater noster, como se pode notar nas reuniões internacionais em Roma ou alhures. Numa época marcada por uma grande mobilidade e globalização, uma língua litúrgica comum poderia servir como vínculo de unidade entre povos e culturas, além do fato de que a liturgia latina é um tesouro espiritual único que alimentou a vida da Igreja por muitos séculos. Mais que qualquer outra língua, o latim contribui para o caráter sacro e estável "que atrai muitos para o antigo uso", como escreve o Santo Padre Bento XVI na sua Carta aos Bispos, em ocasião da publicação do Motu Proprio Summorum Pontificum (7 de julho de 2007). Com o uso mais amplo da língua latina, escolha perfeitamente legítima, mas pouco usada, "na celebração da Missa segundo o Missal de Paulo VI poderá manifestar-se, de modo mais forte do que tem sido frequentemente até agora, aquela sacralidade" (ibid.).

Enfim, é necessário preservar o caráter sacro da língua litúrgica na tradução vernácula, como faz notar com exemplar clareza a Instrução da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos sobre a tradução dos livros litúrgicos Liturgiam authenticam de 2001. Um fruto notável desta instrução é a nova tradução inglesa do Missale Romanum que será introduzida em muitos países anglófonos no curso deste ano.

Fonte: Zenit
Tradução Oblatus