E a missa tridentina chega a Porto Alegre
Oito de maio de 2011, 9h30. No Dia das Mães, mais de 80 fiéis se reúnem na tradicional Igreja São José, no centro de Porto Alegre, para participar de uma missa que remonta aos séculos. Especificamente o século XVI, quando o Papa Pio V, no contexto da Contrarreforma, aprovou o então novo Missal Romano, dirimindo algumas questões teológico-litúrgicas levantadas pelos protestantes de então e buscando uma unificação dos diversos ritos católicos da época. ["Propriamente falando uma Missa Tridentina ou de São Pio V nunca existiu, já que, seguindo as instâncias do Concílio de Trento, não foi formado um Novus Ordo Missae, dado que o Missale sancti Pii V não é mais que o Missal da Cúria Romana, que foi se formando em Roma muitos séculos antes, e difundido especialmente pelos franciscanos em numerosas regiões do Ocidente. As modificações efetuadas em sua época por São Pio V são tão pequenas, que são perceptíveis tão somente pelos olhos dos especialistas ". Klaus Gamber, A Reforma da Liturgia Romana, p. 18]
A Comunidade de São José dos Alemães, estabelecida na capital do Estado em 1871, pôde, assim, reviver uma experiência litúrgica dos seus primeiros membros. Porém, nesta versão do século XXI, os fiéis se deslocam até a Igreja de carro, desligam seus celulares ao entrar no templo, e o sistema eletrônico de som e luzes colabora com a construção simbólica da celebração.
Atendida desde a sua fundação pelos padres da Companhia de Jesus, a comunidade foi guiada nessa "nova experiência antiga" por um jovem jesuíta: o padre Adilson Feiler. Natural de Santa Catarina, Feiler entrou para a Companhia de Jesus no ano 2000 e foi ordenado há dois anos em Curitiba. É um padre, portanto, da geração Bento XVI, como ele mesmo destaca.
Feiler fez filosofia e teologia na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - Faje, em Belo Horizonte. É mestre em filosofia pela Unisinos e doutorando na mesma área pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC-RS, em cuja tese aborda uma aproximação entre dois filósofos, a partir dos conceitos de destino e amor, em busca de um pacto sobre um mesmo ethos cristão: Hegel e Nietzsche.
Após a publicação do motu proprio de Bento XVI, em 2007, a chamada "missa tridentina", a partir do missal aprovado após o Concílio de Trento, em 1570, foi novamente incentivada. A proposta do papa também era retomar a "dignidade do culto contra certas deformações causadas por uma leitura apressada do Concílio Vaticano II", como afirma o padre Feiler em artigo publicado no boletim informativo mensal da Igreja São José.
Na última sexta-feira, o padre Feiler recebeu a IHU On-Line em seu escritório, na secretaria da igreja, para conversar sobre a retomada das celebrações da missa tridentina em Porto Alegre, que deverão ter continuidade a cada 15 dias.
Com o placet do arcebispo local, Dom Dadeus Grings, Feiler dirigiu-se resoluto ao altar da Igreja São José naquele domingo, "espaço litúrgico todo privilegiado pela beleza arquitetônica como pela excelente acústica", de acordo com Feiler em seu artigo. Acompanhado por cinco acólitos, ele celebrou a missa de seus antepassados, em latim e versus Deum.
Eis a entrevista.
IHU On-Line – Como vocês chamaram essa "forma extraordinária" da missa, segundo o documento do Papa: missa tridentina, missa tradicional?
Adilson Feiler – Popularmente, nós chamamos de missa tridentina. Conversando com o senhor arcebispo, Dom Dadeus, preferimos que seja chamada de missa do Missal do Beato João XXIII, uma missa originária do Missal de São Pio V, do século XVI, e que passou por várias modificações, até ter, no Missal de 1962, de João XXIII, sua forma última. Eu prefiro chamar de missa do Missal de João XXIII.
IHU On-Line – Como nasceu a ideia de celebrar a missa tridentina aqui, em Porto Alegre?
Adilson Feiler – Essa missa já foi possibilitada por Sua Santidade, o Papa Bento XVI, desde 2007, dois anos depois do início do seu pontificado. Então, em vários lugares no Brasil, essa missa já existia, já era celebrada, de maneira – como você disse – extraordinária. Causou algumas repercussões em algumas comunidades, pelo que eu tenho acompanhado, quando alguns padres decidiram substituir missas de maneira ordinária. Isso criou alguns problemas, mas que foram, depois, contornados com o diálogo.
Então, quando eu estive em Curitiba, no ano passado, eu cheguei a presidir essa missa em algumas ocasiões em duas paróquias. São os padres seculares, diocesanos, que a presidem. E, às vezes, eles pediam para que eu os substituísse, quando não podiam. E não são muitos os padres, pelo que eu sei, que presidem essa missa.
Quando eu cheguei aqui em Porto Alegre, algumas pessoas souberam que eu já presidia essas missas, de maneira extraordinária, esporadicamente; perguntaram, então, se haveria a possibilidade de eu presidir essa missa aqui, na Igreja São José. Eu respondi: "Olha, vou ter que consultar o reitor da Igreja [Pe. Eloy Oswaldo Guella, SJ], em primeiro lugar, e as pessoas da comunidade". Esta é uma Igreja particular, da comunidade dos alemães, não é da Companhia de Jesus. Os jesuítas apenas prestam um serviço, desde a sua fundação, há mais de 100 anos. Então, em discernimento diante do Senhor, a comunidade achou que seria uma experiência interessante, que poderíamos começar para ver.
Mas, é claro, nós tínhamos que tratar também desse assunto com o ordinário da Arquidiocese de Porto Alegre, que é o senhor arcebispo, a quem nós estamos, em primeiro lugar, submetidos. Sobre qualquer coisa que diga respeito ao serviço da Igreja, temos que nos dirigir ao senhor arcebispo e à comunidade. Então, conversamos com o arcebispo, ele nos disse que não haveria problemas, que inclusive algumas pessoas já solicitaram essa missa a ele.
Então, surgiu essa possibilidade. Nós preparamos alguns acólitos daqui mesmo, já que é uma missa cheia de rubricas e exige bastante preparo – a própria pronúncia do latim, requer-se um certo conhecimento da língua. Presidimos a primeira missa no domingo passado [8 de maio], às 9h30, e durou exatamente uma hora, pois temos a missa ordinária às 10h30.
IHU On-Line – E como a comunidade em geral reagiu? Qual foi a repercussão?
Adilson Feiler – Havia muitas pessoas, em torno de 86. E isso que foi no Dia das Mães, e muitas pessoas que não puderam vir disseram que querem participar das próximas. E havia pessoas não só de Porto Alegre, mas até de Encantado. Então, o que as pessoas disseram? Agradeceram pela missa. E eu achei impressionante, porque nós preparamos um ritual que as pessoas pudessem acompanhar, bilíngue – português e latim –, e as pessoas respondiam e cantavam. Nós fizemos uma missa híbrida, porque existem as low masses, que são as missas simples, e as missas solenes, high masses. Então, tomamos a missa simples, porém com enxertos da missa solene. E eu senti o quanto as pessoas aproveitaram, cantaram, rezaram.
É claro, algumas pessoas que nunca tinham vivido esse rito tiveram alguma dificuldade em acompanhar o ritual. Mas, em geral, ouvi elogios das pessoas. Aquelas que vieram, na sua grande maioria, é porque pediram essa missa, salvo outras que vieram por curiosidade. Nós evitamos ao máximo, conforme conversamos com o senhor arcebispo, não tornar esse ritual da missa um espetáculo, um teatro. Porque a missa tem um valor em si mesma, o sacrifício que se renova da Paixão, Morte e Ressurreição de Nosso Senhor.
Sobre o aspecto místico, posso destacar que, desde a preparação, entre os cinco auxiliares de missa, os cinco acólitos que estavam na sacristia, havia um silêncio, um recolhimento que proporcionou a essas pessoas um clima de oração, de comunhão com Deus. Eu senti isso muito. E, se fosse fazer uma síntese, a repercussão foi positiva nas pessoas, elas se sentiram contentes, agradeceram. Muitas chegaram depois na sacristia e disseram: "Obrigado, padre, por nos ter dado esse presente". Então, eu senti o quanto elas fizeram uma experiência de Deus. Fazendo uma avaliação, eu diria que alguns detalhes nós podemos melhorar nas próximas ocasiões, mas, no todo, foi válido.
IHU On-Line – Foi toda rezada em latim, ou houve momentos, como as leituras, que foram em português, como o motu proprio permite?
Adilson Feiler – No documento motu proprio diz-se que as leituras podem ser em português. Nós fizemos em latim. Estamos pensando, para a próxima missa, em fazê-las em português. A homilia, que é feita no púlpito, é em português. Na próxima missa, estamos pensando em até fazer uma breve explicação, já que essa missa não tem comentários. Tem certos elementos que não se pode mudar. Pode-se fazer as leituras em português, como nós pensamos para a próxima, e uma breve explicação da estrutura da missa, para que as pessoas possam aproveitar mais, uma espécie de catequese fora da homilia, que é o momento em que o padre se volta para as pessoas. Em outros momentos, ele está versus Deum [voltado para Deus], mas, em outros, ele se volta para as pessoas, como em algumas invocações, Dominus vobiscum [Deus esteja convosco].
IHU On-Line – Para o fiel, quais são as principais diferenças litúrgicas da missa celebrada no rito antigo com relação à missa em sua forma ordinária, segundo o missal de Paulo VI usado hoje?
Adilson Feiler – Conforme o documento do papa, não é um outro rito: é o mesmo rito, o rito latino. Porém, muda a maneira de celebrar, uma maneira que é chamada – popular ou vulgarmente – de "tridentina". Mas o que basicamente muda são alguns gestos do padre, a sua própria postura: ele está versus Deum – essa é a grande diferença – e o fato de ser em latim.
Também as orações ao pé do altar, logo no princípio. São recitadas algumas antífonas: "Introibo ad altare Dei qui lætificat juventutem meam", "Subirei ao altar de Deus, que é a alegria da minha juventude", mais alguns versículos do Salmo 42. É uma espécie de preparação que o padre com os seus acólitos fazem.
Existe também uma única oração eucarística, que é o Cânon Romano – I Oração Eucarística do missal atual –, e que é toda rezada em silêncio, in secreto. Talvez esse seja o ponto que mais crie estranhamento nas pessoas, porque é uma oração toda em silêncio. Então, esse é um ponto que merece um esclarecimento para as pessoas, principalmente as que não viveram essa missa.
Outra diferença é um segundo Evangelho, sempre fixo, que é o Prólogo do Evangelho de João, que é rezado depois da bênção final, na Sacra, ao lado esquerdo do altar, que é o lado da Epístola, como nós chamamos – Epístola, Evangelho e Lavabo: esses são os três lados do altar.
Basicamente são essas as diferenças. Não há grandes diferenças. O Kyrie, o Ato Penitencial, o Glória, o Creio são todos iguais, só que em latim.
IHU On-Line – O senhor também disse que a proposta não é de uma experiência estética. Então, com relação aos aspectos teológicos mais de fundo, por que rezar uma missa tridentina e por que não a missa ordinária?
Adilson Feiler – Nós celebramos a missa ordinária diariamente, e, como o próprio nome já diz, é a missa da ordem comum. Já a missa do Missal de João XXIII é uma missa extraordinária, conforme as orientações do papa. As pessoas que querem, têm a possibilidade de celebrar também a missa extraordinária.
IHU On-Line – Mas existe alguma opção teológica de fundo?
Adilson Feiler – Não. Simplesmente colocamos em prática uma das orientações do Papa Bento XVI. As pessoas que querem, pedem, têm como direito seu que se celebre essa missa. Se há uma comunidade de fé de pessoas que partilham e que conhecem minimamente o latim, que comungam desse espírito, elas fazem a experiência de Deus: aí não se torna espetáculo. Caso contrário se torna algo externo. Então, se existe uma comunidade de fiéis que comungue com isso, teologicamente falando, a missa nova é igual à missa antiga: ou seja, a Igreja faz eucaristia, a eucaristia faz Igreja, um processo dialético. A unidade da fé dos fiéis: isso é igual. Desde tempos imemoriais até o futuro, deve ser respeitado o princípio segundo o qual cada Igreja particular deve estar de acordo com a Igreja universal sobre a doutrina da fé e os sinais sacramentais, nos usos universalmente transmitidos pela tradição apostólica contínua. Estes devem manter-se não só para evitar os enganos, mas também para que a fé seja transmitida em sua integridade, já que a regra de oração da Igreja (lex orandi) corresponde a sua regra da fé (lex credendi).
IHU On-Line – Foi necessário algum tipo de negociação com a Igreja local, com Dom Dadeus ou com os seus irmãos jesuítas? Foi necessário obter autorização?
Adilson Feiler – A primeira autorização tivemos que pedir à comunidade. Eu sou vice-reitor. O reitor da Igreja é a autoridade máxima aqui dentro [da comunidade]. Claro, você tem que conhecer minimamente a comunidade. Esse é o princípio missionário da Companhia de Jesus: se adaptar aos tempos, lugares e pessoas.
A comunidade São José é uma comunidade tradicional. Não daria para se fazer isso em outras comunidades em que eu vivi, que já não têm esse perfil. Eu não estaria falando, traduzindo o Evangelho na linguagem dessas pessoas. Aqui, então, foi perfeitamente viável.
Mas foi necessária uma negociação com o reitor da Igreja, com a comunidade e com o arcebispo, que é o nosso ordinário no que diz respeito a qualquer coisa que formos fazer. No que diz respeito ao celebrar o culto, propriamente – embora o papa autorize a presidência desta missa extraordinariamente –, para nos manter em comunhão com a Igreja local, nós tivemos que pedir a autorização, o placet do senhor arcebispo. Isso foi muito tranquilo.
No nosso boletim, eu até escrevi uma breve nota sobre o documento motu proprio, já que isso pode causar um certo estranhamento em algumas pessoas. Tudo o que você for fazer vai causar prós e contras. É claro, temos que suscitar a discussão e enfrentar o conflito mais com argumentos, que sejam minimamente plausíveis para que venham corroborar a nossa proposta de possibilitar às pessoas ter acesso a essa missa. Pessoas que conhecem, que participam, que fazem uma experiência de Deus dentro desse rito, melhor dizendo, dentro dessa maneira de celebrar.
IHU On-Line – E com os jesuítas, como foi?
Adilson Feiler – Alguns apoiam, outros não. Há controvérsias. E é inclusive salutar que existam.
IHU On-Line – Quais são os projetos a partir de agora? A missa no rito antigo vai ter continuidade, de 15 em 15 dias?
Adilson Feiler – Esperamos que sim. O nosso termômetro é a comunidade dos fieis, a quem nós servimos.
IHU On-Line – E estão planejadas outras celebrações segundo o missal de Pio V, como batizados, casamentos etc.?
Adilson Feiler – A princípio, até se poderia, segundo o documento. Mas por enquanto são as eucaristias, quinzenalmente.
IHU On-Line – E com relação à instrução sobre o motu proprio, que vai esclarecer algumas questões que foram surgindo ao longo do tempo, o que o senhor desejaria que ficasse mais claro?
Adilson Feiler – Um esclarecimento maior sobre o fato de que a missa do Missal de João XXIII e a missa do Missal de Paulo VI são a mesma missa. Não se tratam de ritos diferentes (o que seria algum rito oriental, por exemplo). E também um esclarecimento para que não exista confusão entre a maneira tridentina de celebrar com o ser conservador. Essa é a grande confusão que pode ser causada nas pessoas. Acho que é um juízo, no mínimo, apressado.
IHU On-Line – Perante uma sociedade que se diz pós-moderna, líquida, marcada pela revolução tecnológica, que significado o senhor percebe nessa retomada de uma fé mais tradicional? É um paradoxo ou é um sinal dos tempos?
Adilson Feiler – Isso nós podemos assistir em todos os momentos da história quando se está vivendo uma abertura grande: de repente, se vê a fragmentação. Nós podemos dizer que o homem pós-moderno, o homem de hoje, está fragmentado. E, nessa fragmentação, está havendo a busca de algo, de um sentido. Nós estamos mergulhados em um chamado "niilismo". Então é preciso estabelecer algum ponto de sustentação, e acredito que, possivelmente, essa maneira de celebrar seja uma das respostas às quais somos chamados.
Claro, todas as mudanças são doloridas, são traumáticas. Estamos vivendo uma fase de transição. Fui ordenado na era Bento XVI, que é uma outra era. Eu tenho que enfrentar, digamos, críticas de uma parte que viveu uma outra era. Então, é comum isso dentro da sociedade, da Igreja e mesmo nas ordens religiosas. Temos que viver aquilo que Santo Inácio diz: estar aberto aos tempos, ao espírito dos tempos. E o espírito que nós vivemos é este: de fragmentação e, dentro dessa fragmentação, há uma busca. Então é preciso estabelecer sentido para a vida, valores, e, dentro deles, também pode-se destacar os valores religiosos, celebrativos. As pessoas estão buscando a mística, o silêncio na liturgia: ou seja, o mistério. O barulho se torna espetáculo; o silêncio conduz as pessoas ao mistério. E para endossar esta ideia cito um pensamento de um teólogo jesuíta Karl Rahner: "O cristão do futuro ou será místico ou não será cristão". A maneira tridentina de celebrar não seria uma busca dessa mística?
(Por Moisés Sbardelotto)
Fonte: IHU