segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

O Cardeal Newman e a Imaculada Conceição (UPDATE)



Excertos do Memorandum sobre a Imaculada Conceição do Cardeal Henry Newman.

I

1. É, para mim, tão difícil penetrar nos sentimentos de uma pessoa que compreende a doutrina da Imaculada Conceição, e ainda assim lhe faz objeção, que me sinto inseguro ao tentar falar sobre o tema. Fui acusado de tê-la sustentado, num dos primeiros livros que escrevi, vinte anos atrás. Por outro lado, este simples fato pode ser um argumento contra algum objetor – por que razão não me pareceu difícil àquela altura, se havia uma real dificuldade em aceitá-la?

2. O objetor não se dá conta de que Eva foi criada, ou nasceu, sem o pecado original? Por que isto não o escandaliza? Sentir-se-ia ele inclinado a adorar Eva naquele seu primeiro estado? Por que, então, a Maria?

3. Ele não crê que São João Batista teve a graça de Deus, isto é, foi regenerado, antes mesmo de seu nascimento? O que cremos acerca de Maria senão que a graça lhe foi dada num período um pouco anterior? Tudo o que afirmamos é que a graça foi dada a ela desde o primeiro momento de sua existência.

4. Não afirmamos que ela não deveu sua salvação à morte de seu Filho. Muito pelo contrário, afirmamos que ela, dentre todos os descendentes de Adão, é no sentido mais verdadeiro o fruto e a aquisição de Sua Paixão. Ele fez por ela mais do que por qualquer outra pessoa. Aos outros Ele deu a graça e a regeneração num certo ponto de sua existência terrena; a ela, desde o início.

5. Não tornamos sua natureza diferente das outras. Entretanto, como diz Santo Agostinho, não gostamos de mencionar seu nome no mesmo fôlego que mencionamos pecado, ainda que certamente ela tivesse sido um ser frágil como Eva, sem a graça de Deus. Um dom mais abundante da graça fez dela o que ela foi desde o início. Não foi sua natureza que lhe garantiu a perseverança, mas o excesso da graça que impediu a Natureza de agir como a Natureza jamais agirá. Não há diferença de tipo entre ela e nós, mas uma diferença inconcebível de grau. Ela e nós somos simplesmente salvos pela graça de Cristo.

Logo, sinceramente falando, Eu realmente não vejo qual seja a dificuldade, e gostaria de colocá-lo por escrito com clareza. Quero acrescentar que a afirmação acima não é uma afirmação privada minha. Nunca soube de qualquer católico que tivesse outra visão. Nunca soube de nenhuma outra visão tenha sido proposta por alguém.

II

(1) Depois, era uma doutrina primitiva? Ninguém pode acrescentar algo à revelação. Esta foi dada de uma vez por todas; mas, na medida em que o tempo avança, o que foi dado de uma vez por todas é entendido mais e mais claramente. Os maiores Padres e Santos, neste sentido, estiveram no erro, ou seja, uma vez que a matéria sobre a qual falaram não havia sido examinada, e a Igreja não havia falado, eles não fizeram justiça, em suas expressões, a seus reais significados. Por exemplo, o Credo Atanasiano diz que o Filho é “imenso” (na versão protestante, “incompreensível”). O Bispo Bull, embora defendendo os Padres pré-nicenos, diz que é um prodígio que “quase todos eles deem a impressão de serem ignorantes acerca da invisibilidade e grandeza do Filho de Deus”. Por um momento, porventura, eu penso que eles fossem ignorantes? Não, mas que eles falaram inconsistentemente, porque se opunham a outros erros, e não perceberam o que diziam. Quando surgiu o herético Ário, e eles viram o uso que se fazia de suas afirmações, os Padres se retrataram.

(2) Os grandes Padres do quarto século pareciam, a maioria deles, considerar nosso Senhor ignorante em Sua natureza humana, e que tivesse progredido em conhecimento, como São Lucas parece dizer. Esta doutrina foi anematizada pela Igreja no século seguinte, quando apareceram os Monofisitas.

(3) Da mesma forma, há Padres que parecem negar o pecado original, a punição eterna, etc.

(4) E mais, o famoso símbolo “Consubstancial”, aplicado ao Filho, que se encontra no Credo Niceno, foi condenado por um grande Concílio de Antioquia, com Santos presentes, setenta anos antes. Por quê? Porque aquele Concílio queria dizer outra coisa com aquela palavra.

Agora, quanto à doutrina da Imaculada Conceição, ela estava implícita nos primeiros tempos, e nunca foi negada. Na Idade Média, ela foi negada por Santo Tomás e por São Bernardo, mas eles tomam a frase num sentido diferente daquele que a Igreja agora toma. Eles a entenderam com referência à mãe de Nossa Senhora, e pensaram que ela contradizia o texto, “Em pecado minha mãe me concebeu” – ao passo que nós só falamos de Imaculada Conceição em relação a Maria; e a outra doutrina (à qual, de fato, Santo Tomás e São Bernardo se opuseram) é realmente herética.

III

Como noção primitiva sobre Nossa Bem-Aventurada Senhora, o frequente contraste entre Maria e Eva realmente parece muito forte. É encontrado em São Justino, Santo Irineu e Tertuliano, três dos Padres mais antigos, e em três continentes distintos – Gália, África e Síria. Por exemplo, “o nó formado pela desobediência de Eva foi desatado pela obediência de Maria; aquilo que a Virgem Eva atou pela incredulidade, a Virgem Maria desatou pela fé”. De novo, “A Virgem Maria tornou-se Advogada (Paráclita) da Virgem Eva, e assim como a humanidade foi submetida à morte através de uma Virgem, através de uma Virgem pode ser salva, sendo o equilíbrio preservado, a desobediência de uma Virgem pela obediência de uma Virgem” (Santo Irineu, Hæer. v. 19). De novo, “Como Eva, tornando-se desobediente, tornou-se a causa de sua própria morte e da de toda a humanidade, assim também Maria, trazendo o Homem predestinado, e ainda Virgem, sendo obediente, tornou-se a CAUSA DE SALVAÇÃO tanto para si mesma como para toda a humanidade”. Novamente, “Eva sendo uma Virgem, e incorrupta, gerou desobediência e morte, mas Maria a Virgem, recebendo fé e alegria quando o Anjo Gabriel a evangelizou, respondeu, ‘Faça-se em mim’”, etc. De novo, “O que Eva fracassou por não crer, Maria crendo encobriu”.

1. Agora, podemos nos recusar a ver que, segundo estes Padres, os mais antigos dos antigos, Maria era uma mulher típica como Eva, que ambas foram dotadas de especiais dons da graça, e que Maria venceu onde Eva fracassou?

2. Ademais, que luz eles lançam sobre a doutrina de Santo Afonso, da qual se faz às vezes um discurso, o das duas escadas. Vê-se que, segundo os mais antigos Padres, Maria desfaz o que Eva havia feito; a humanidade é salva através de uma Virgem, a obediência de Maria torna-se causa de salvação para toda a humanidade. E mais, o modo distinto pelo qual Maria faz isto é enfatizado quando ela é chamada Advogada pelos antigos Padres. A palavra é usada para nosso Senhor e para o Espírito Santo – para nosso Senhor, quando intercede por nós em Sua própria Pessoa; para o Espírito Santo, quando intercede nos Santos. Este é a via branca, enquanto a via especial de nosso Senhor é a via vermelha, isto é, a de seu Sacrifício expiatório.

3. E ainda mais, que luzes estas passagens lançam em dois textos da Escritura. Nossa leitura é: “Ela vos esmagará a cabeça”. Agora, apenas este fato de nossa leitura, “Ela esmagará”, tem algum peso, por que razão não seria nossa leitura a correta? Mas faça a comparação de Escritura com Escritura, e veja como a coisa toda se vincula quando nós a interpretamos. Uma guerra entre a mulher e a serpente é narrada no Gênesis. Quem é a serpente? A Escritura não diz em nenhum lugar até o capítulo doze do Apocalipse. Lá enfim, pela primeira vez, a “Serpente” é interpretada para significar o Espírito Mau. Agora, como ele é apresentado? Ora, novamente pela visão de uma Mulher, inimiga dele – e assim como na primeira visão do Gênesis a Mulher tem uma “descendência”, aqui tem um “Filho”. Podemos ajudar dizendo, então, que a Mulher é Maria no terceiro capítulo de Gênesis? E neste caso, e nossa leitura está correta, a primeira profecia dada contrasta a Segunda Mulher com a Primeira – Maria com Eva, exatamente como São Justino, Santo Irineu e Tertuliano fazem.

4. Além do mais, veja a relação direta disto com a Imaculada Conceição. Houve guerra entre a mulher e a serpente. Isto é mais enfaticamente realizado se ela nada tem nada a ver com o pecado – porque, na medida em que alguém peca, ele tem uma aliança com o Maligno.
IV

Agora quero que seja observado por que razão cito, deste modo, os Padres e a Escritura. Não para provar a doutrina, mas para desvencilhá-la de qualquer monstruosa improbabilidade que poderia tornar uma pessoa escrupulosa em aceitá-la quando a Igreja a declara. Um protestante poderia dizer: “Oh, eu realmente nunca, nunca poderei aceitar tal doutrina das mãos da Igreja, eu preferiria milhares, milhares de vezes constatar que a Igreja falou falsamente a que esta doutrina terrível fosse verdadeira”. Agora, meu bom homem, POR QUÊ? Não caia em tal espantosa agitação, como um cavalo envergonhado de não sabe o quê. Considere o que eu disse. É, de alguma maneira, certamente irracional? É certamente contrário à Escritura? É certamente contrário aos primitivos Padres? É certamente idolátrico? Não posso deixar de sorrir na medida em que faço as perguntas. Ou melhor, não deve alguma coisa ser dita a favor dela a partir da razão, da piedade, da antiguidade do texto inspirado? Você pode não ver razão alguma para acreditar na voz da Igreja; você pode não ter ainda chegado à fé nela – mas de que maneira esta doutrina poderia balançar sua fé nela, se você tem fé, ou levá-lo ao mais-ou-menos se você começa a considerar que ela possa ser de Deus, está além do que sou capaz de compreender. Muitas, muitas doutrinas são mais difíceis do que a Imaculada Conceição. A doutrina do Pecado Original é infinitamente mais difícil. Maria simplesmente não tem esta dificuldade. Não é difícil acreditar que a alma esteja unida à carne sem o pecado original; o grande mistério é que alguns, milhões em milhões, nasceram com ele. Nossa doutrina sobre Maria é tão somente menos difícil que nossa doutrina sobre o estado da humanidade em geral.

Digo-o com clareza – pode haver muitas escusas no último dia, boas e más, para não ser católico; uma não posso conceber: “Ó Senhor, a doutrina da Imaculada Conceição era tão prejudicial à Vossa graça, tão inconsistente com Vossa Paixão, tão oposta a Vossas palavras no Gênesis e no Apocalipse, tão diferente do ensinamento dos Vossos primeiros Santos e Mártires, que me deu o direito de rejeitá-la com todos os riscos, e à Vossa Igreja por ensiná-la. É uma doutrina sobre a qual meu juízo privado está plenamente justificado em oposição ao juízo da Igreja. E esta é minha alegação por ter vivido e morrido como protestante”.


Fonte: The Anglo-Catholic
Tradução: Oblatus